segunda-feira, 28 de maio de 2012


A PEDINTE (livro em construção)


Ao Ivan.


Prólogo
Aprendendo depois da Escola


Eu nunca fui bom em aprender numa escola.
Como a maioria dos meninos eu aprendo só o que não presta. Ou o lugar me ensina algo doloroso. Um garoto como eu não deveria freqüentar a escola. Porque eu incomodo os outros garotos.
Pode ser ilusão da minha cabeça. Eu fiz uma pesquisa na internet, pouco depois de pesquisar a palavra “bullying”. Pesquisei os transtornos sociais que uma pessoa pode desenvolver desde pequena – pois desde pequeno tenho peculiaridades que outras pessoas não desenvolveram tão cedo - e descobri um nome. Asperger. Devo ter isso.

“ Pessoas com Síndrome de Asperger podem vir a ter muitas dificuldades em sua vida social, devido ao motivo de portadores dessa patologia psicológica ser incapazes de discernir quando alguém está falando através de figuras de linguagem ou em sentido denotativo. A Síndrome de Asperger – homenagem a Hans Asperger – é uma síndrome que deriva do espectro autista, diferenciando-se do autismo pelo fato do paciente não ter absolutamente nenhum sinal de possível retardamento intelectual. Muito ao contrário; os aspergers apresentam desde cedo um intelecto invejável e uma imaginação e capacidades criativas fora do comum.
Sendo mais comum no sexo masculino, as pessoas pertencentes a essa grupo tem dificuldade de expressar e interpretar expressões verbais e não verbais que sugerem emoções, muitas vezes pensando que as pessoas estão as odiando quando na verdade não ligam muito para elas ou imaginando que as pessoas estão felizes ao ouvirem eles falando algo que lhes desperta interesse, quando na verdade estão entediadas e aborrecidas com eles. Devido a esse fator, eles têm uma dificuldade bastante visível em relacionamentos amorosos e sexuais, chegando até mesmo ao ponto de alguns deles desistirem de procurar se encantar ou encantar alguém, não se relacionado e ficando sós pela vida inteira. Apesar de todas as dificuldades sofridas em silêncio, os aspergers podem ter a vida adulta relativamente normal.
A dificuldade de relacionamento gera em 90% dos casos no afastamento social muito próximo, o que faz com que as outras pessoas pensem que eles são indivíduos mal humorados, egoístas, orgulhosos e sem simpatia – ou até mesmo empatia. Isso torna os contatos sociais ainda mais difíceis e distantes.
Aspergers sentem empecilhos ao se envolverem socialmente, evitando pessoas conhecidas na rua por exemplo. Devido a isso, vários deles desenvolve sociofobia, ou fobia social. Também sentem dificuldade de mudar algo em sua rotina e podem desenvolver manias repetitivas e comportamentos estereotipados, junto com uma cognição normal ou alta. Na infância possuem grande curiosidade e sede de saber e desenvolvem adaptação a ocasiões que não envolvam esforço social. São bastante racionais, apesar de emocionais, ainda que introspectivamente.
Eles raramente olham nos olhos de uma pessoa, e quando olham sempre se perguntam o que a pessoa está pensando a seu respeito no momento. Por vezes são rudes, grosseiros e egocêntricos, não percebendo que seu comportamento não condiz quando ele faz com quem ele faz e onde ele faz. Se – e isso ocorre com bastante freqüência - a fobia social se desenvolver, ele começa a temer feria as pessoas de algum jeito, e também teme ser ferido. Isso o faz evitar situações sociais, e desenvolvem uma autocrítica elevada, levando a idéias que o sugere pensar que é uma pessoa inferior às outras. Devido a isso tudo que foi dito até agora – a todo isso que se passa na cabeça do asperger – ele pode chegar a ter exaustão mental, causada literalmente por pensar demais, e pensar com sentimentos negativos – receio e medo, por exemplo.
Comportam-se hora como adultos, hora como crianças, variando aleatoriamente. Pessoas que observam a aflição que alguns aspergers têm de achar que estão sendo inadequados para a sociedade os julgam erroneamentecomo paranóicos.
Por vezes os aspergers não possuem o dom de entender o outro ponto de vista de uma conversa, ou discussão, e se percebem que estão errados, não sentem, em grande parte das vezes, remorso. Por isso são julgados como seres com orgulho acima do normal – principalmente devido ao seu nível cognitivo, que pode ser alto. É importante lembrar que eles agem sim grosseiramente, mas na maioria das vezes não tem a mínima intenção de ofender a ninguém. São muito comumente pacíficos e abominam atos de violência.
Fazem tudo como acham melhor, para viver melhor. Não tem senso de moda, por exemplo, e se são criticados pelo seu visual ou pelo seu modo de vida, buscam não se ligar a palpites, pelo fato de já estarem acostumados a serem sedentários e excluídos. Por usarem mais a razão do que a intuição, pausas constrangedoras podem ser vistas feitas por eles, só para tentar entender as emoções de uma pessoa diante deles. Reagem de forma intensa às emoções – e isso os faz quase que serem o oposto dos psicopatas, que não tem emoção e demonstram reações falsamente - mas demonstram isso exteriormente de modo muito limitado. Infelizmente, por um mal entendido até mesmo pela ausência de um diagnóstico, o jeito isolado e aparentemente frio dos asperger pode causar problemas familiares. O diagnóstico da Síndrome de Asperger é complexo de ser realizado.
Os aspergers não têm qualquer tipo de prejuízo na linguagem – tendo alguns deles até certa peculiaridade no próprio vocabulário, pois não raramente eles se refugiam grande parte do tempo em livros - a menos que sejam expostos a situações sociais do qual eles não estão acostumados.
Os aspergers são, em sua maioria, atentos com o mundo interior e desatentos com o mundo exterior. Devido a isso, são detalhistas com elementos e não compreendem o conjunto. Tem interesse em focos bastante específicos, mas são desinteressados em assuntos comuns. Memória fotográfica – a chamada memória eidética – pode estar presente.
Uma peculiaridade interessante é que praticamente todos os aspergers têm caligrafia quase ilegível. ”

Eu disse que devo ter isso porque senti que tinha lido minha autobiografia quando terminei o texto. Ok era um texto da internet, e ok era um auto diagnostico que poderia estar errado, mas e daí. Eu estava naquele texto… é como se ele fosse assinado com Saulo no fim.
Saulo. Meu nome. Diferente, por vezes acreditava eu - eu era o único na 5ª série com esse nome - mas ainda sim achava comum. Não sei porquê essa sensação. Não sou bom em sensações. São legítimas, porém, sempre se enganavam. Por exemplo, por que estou falando sobre meu nome quando na verdade deveria falar sobre os meus “coleguinhas” de sala e suas brincadeiras idiotas?
Mas minha mãe... era diferente. Quando eu não conseguia fazer o que ela queria, para ela era sempre porque eu não estava com vontade. Nunca era porque eu não sabia fazer. Mesmo assim, ela era um dos poucos motivos que eu tinha para continuar freqüentando o colégio.
Todos os dias eu percorria o mesmo caminha, via as mesmas pessoas, passava pelas mesmas ansiedades e dava bom dia para os mesmos motoristas de ônibus. Aliás, eu era o único da cidade que fazia essa última parte. Sentia os mesmos olhares observando meus óculos de “fundo de garrafa” desgastados, meu nariz achatado, meu cabelo castanho bagunçado e meu visual nada atraente. Metade das garotas atraentes da minha sala também fazia isso. A outra metade praticava bullying comigo.
Todos os dias eu conversava com as mesmas pessoas nesse trajeto – comigo mesmo e com o Saulo – e cada vez mais percebia como as gripes que eu pegava eram mais freqüentes. Complicado. Os professores não deixavam ir ao banheiro durante as aulas. Eu sempre esperava o horário do recreio para assoar no nariz. Se fizesse isso na sala, a risadaria era incontrolável.

Bate papo cabeça informal - Carlos Henrique de Sousa e Cícero Lourenço (Início da jornada de diálogos e Síndrome de Asperger)


Carlos Henrique de Sousa

fala

Cícero Lourenço

noite rapaz!

tudo joia?

Carlos Henrique de Sousa

joia…

quer dizer, com gripe

mas vou melhorar

e tu?

Cícero Lourenço

to joinha.

tive um dia tranquilo.

Carlos Henrique de Sousa

sei…

cara, vc lembra q eu falei de fazer algo na net de comentar coisas de interesse?

tipo no jovem nerd…

Cícero Lourenço

lembro, lembro sim

Carlos Henrique de Sousa

o q acha de fazermos isso, só q com texto?

tipo a gente comenta sobre algum tema num diálogo

pode ser até por aqui msm

e coloca nos nossos blogs

ou tumblrs, tanto faz…

Cícero Lourenço

parece uma idéia bacana.

muito bacana mesmo.

Carlos Henrique de Sousa

creio eu q vc é nerd… temos gostos semelhantes…

tipo cinema, literatura, quuadrinhos, games

enfim…

Cícero Lourenço

sim

sou um nerd preguiçoso, mas sou ehe

Carlos Henrique de Sousa

em q sentido?

de acompanhar o q rola?

Cícero Lourenço

eu fico mais no superficial hehe

sei de muita coisa.

Carlos Henrique de Sousa

os nerds em geral precisam saber muitas coisas, por q eles se interessam por muitas coisas… mesmo sabendo o superficial em algo

Carlos Henrique de Sousa

pra alguns, já é muito…

Cícero Lourenço

isso é verdade

Carlos Henrique de Sousa

bem, se vc quiser podemos fazer isso, e postar nos nossos sites pessoais

arrumei mais um, a rede social do jovem nerd

a skynerd

Cícero Lourenço

ah sim

a gente pode tentar sim, ver como fica.

gostei muito do seu texto sobre asperger.

Carlos Henrique de Sousa

ah, rs

valeu

é do livro de filosofia q t falei q to fazendo

nem comecei o capitulo um ainda

rs

to esquematizando o de ficção

e organizando o das poesias/composições tbem…

Cícero Lourenço

dá um frio na barriga a descrição da sindrome.

pq não é algo anormal e pra mim é impossivel nao se identificar.

Carlos Henrique de Sousa

cara, é bastante complicado…

rs, não é um universo só comédia como o de sheldon cooper

tem o lado negro da coisa

se eu publicar, acho que muitos se identificarão…

Cícero Lourenço

nunca gostei do sheldon por isso.

pq eu sei que não é piada.

nao acho que seja algo terrível.

vejo como uma forma diferente se ser gente.

ao meu ver, alguém que se enquadre nesse diagnostico é um ser humano como qualquer outro.

com algumas diferenças, mas chega a ser um “doente”.

é um cérebro que funciona diferente.

Carlos Henrique de Sousa

ah, agora entendi sua aversão pelo sheldon… mas o seriado é uma sátira total né…

assistia ele pra rir, mas hj em dia, quando vejo, é pelas referencias

aprendi muito sobre o universo nerd com o seriado…

vc tá com tempo agora? ou já vai ficar off?

Cícero Lourenço

to com tempo.

nem é aversão, tenho preguiça dele.

Carlos Henrique de Sousa

kkkkkk, entendo… nós poderíamos começar agora se você quiser…

e se não estiver ocupado também…

Cícero Lourenço

a gente vai falando com calma.

Carlos Henrique de Sousa

ok… sobre o que vamos falar? aproveitamos o que ja escrevemos e falamos sobre o universo nerd?

“o que é realmente ser nerd…”

Cícero Lourenço

pq nao continuamos o papo do asperger?

já tá natural.

voce usa pra sua pesquisa.

Carlos Henrique de Sousa

pode ser…

asperger é complicado, até pra diagnosticar…

Cícero Lourenço

pelo que já li sobre a sindrome, na proxima revisão do DSM é bem provavel que seja alterada a descriçao e até o diagnostico.

Carlos Henrique de Sousa

o qu eé DSM mesmo?

Cícero Lourenço

é uma publicaçao que cataloga uma série de doenças.

uma especie de catalogo para disturbios mentais.

é uma boa ler na wikipedia sobre ele.

vai ser bastante util.

Carlos Henrique de Sousa

ah sim… to vendo aqui

é um trabalho de sherlock holmes mesmo…

Cícero Lourenço

muito além de sherlock hehe

Carlos Henrique de Sousa

esses tempos atras, eu assistia mentes em choque

muito interessante

Cícero Lourenço

nao conheço.

é documentario?

Carlos Henrique de Sousa

é um daqueles seriados da fox que passa um tempo, não dá audiência porque o povão não tem muito interesse e para de passar

é como se fosse um dr house

só que o médico é um psiquiatra

Cícero Lourenço

bacana

Carlos Henrique de Sousa

aí ele investigava o paciente a fundo, elaborava hipóteses

até desvendar o que ele tinha

outra coisa complicada em asperger é o respeito, respeito as diferenças mesmo

isso é até rotineiro na sociedade comum

mas aspergers sofrem mais incompreensão pelos fatores que são ocasionados pela patologia

Cícero Lourenço

todo mundo que foge á regra sofre.

nao seria diferente com esse perfil.

como falei, vejo que o individuo nesse quadro é um ser nomal com uma organizaçao mental diferente.

o cerebro, mesmo que sem querer, organiza as coisas num padrao diferente da maioria.

valoriza a cogniçao em detrimento de se desenvolver aptidões sociais.

ele aprende a ler as coisas melhor do que a ler pessoas.

(vou dar uma pausa no papo pra entender o filme que comecei a ver. qualquer coisa tamo aí)

Carlos Henrique de Sousa

ok!

com essa coisa de diferentes focos e perspectivas me lembrei de uma coisa que um professor meu de sociologia, ha muito tempo a trás quando estava fazendo Direito , explicou para a sala de aula quando estavamos confundindo filosofia com sociologia. ele citou o exemplo de um jogo de futebol; num estádio você pode assistir o jogo na perspectiva do juíz, lá no gramado, que está próximo do que acontece, focalizado ao seu redor. devido a isso ele pode não acompanhar todos os lances que acontecem, porque ele só tem dois olhos. isso seria a sociologia e suas chamadas análises dos fatos sociais.

Carlos Henrique de Sousa

já a filosofia é o contrário. o filósofo está sentado lá no último lugar do estádio, lá no topo. de lá ele consegue visualizar o gramado todo, mas lhe escapa detalhes que podem fazer diferença no resultado. a filosofia então se afasta e analisa o todo…

achei muito interessante

Carlos Henrique de Sousa

contraditório, mas asperger é um assinto complexo, porém limitado, pelo menos para mim… acho que como primeiro post dá… Cícero, depois falamos sobre outro tema. vou colocar nosso batepapo no meu tumblr e no meu skynerd ok? coloque no seu tbém!

depois falamos sobre outra coisa

flw e até mais (madrugada já, rsrsrs)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012




Súperos e a Projeção Mental 
(POSTANDO/EDITANDO SEMPRE ALGO POR DIA... APROVEITEM...)



                      C. H. Sousa













































Aviso Um: Esse livro foi escrito para pessoas que possuem mente aberta. Isso não significa acreditar em tudo o que ele passa, mas sim respeitar as observações do autor que aqui vos alerta. Não critique. Lembre-se de que a melhor crítica que você pode fazer a alguém que você “acha” que está errado é dando exemplo. Se você acha que escrevi algo errado ou incompleto, tenha a decência de compartilhar isso escrevendo melhor que eu. O Brasil precisa de mais escritores desta época.


Aviso Dois: Algumas coisas que acontecerão ao personagem Carlos nesta história são semelhantes a coisas que aconteceram comigo no passado. Agradeço a Deus e a você por ter a oportunidade de compartilhar isso contigo caro (a) leitor (a). Sinto muito se não gostar do livro, mas se você gostar, adoraria dizer que eu te amo. Você é tudo para mim. Minha inspiração para escrever, para continuar, vem de você. Minha inspiração para viver também, pois quando um homem não trabalha para a sociedade ele está morto. Apenas sobrevive. E não vive. Há várias formas de amar, e garanto que compreensão é uma delas. Amarei todos os que compreenderem esta obra, e amarei igualmente aos que não gostarem do livro, mas mesmo assim respeitarão minhas idéias. Até mais.


Aviso Três: Aviso especial a minha mãe e meu pai. Desculpe ter incomodado vocês nas madrugadas que passava com o computador ligado. Eu dizia a vocês que não escrevia, já que o manuscrito deste livro não estava ao lado do computador nessas horas, e dizia que ele estava ligado porque eu apenas assistia filmes e ouvia músicas. Era mentira. Eu na verdade estava compondo as letras de rock para colocar no livro, pois eu as escrevia direto na máquina sem um rascunho. Compunha sem revisão porque era mais fácil de me lembrar das palavras adequadas para montar as rimas. Sei que vocês nunca me entenderão como artista, principalmente como escritor, mas peço que se lembrem das palavras de meu psiquiatra quando não me compreenderem ou quando não compreenderem minhas ações fora do normal. Faço minhas as palavras de meu médico: “Não se preocupe com o seu modo de vida em relação as outras pessoas, pois todo escritor é obsessivo.”


























































“O Presidente, porém, disse: - Mas, que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: -Seja crucificado”. (Bíblia Sagrada, Mateus, 27:23)





















































A Ivan.


Prólogo – O Número 3


   O número três é um número mágico. Não sei o que a numerologia trata a respeito disso, mas não escolhi o símbolo do Instituto de Jovens Súperos ao acaso. Construções triangulares não dobram, e são firmes ao suporte de elementos mais densos. Vou dar o exemplo mais nobre: a Trindade Santa é composta por três elementos, fatores divinos e exatos, a composição lógica do universo. "Pai, filho e espírito santo" estão por toda a parte, complexos, quase que indecifráveis. Pai, a origem de tudo que existe, intrigantemente Ele está em tudo, mas nada está nele. Único ser composto por três fatores infinitamente soberanos, Deus é onipotente, onipresente e onisciente. Logo em seguida o segundo elemento, "filho". Poderia ser o filho de Deus, Jesus Cristo. Mas, visto que somos irmãos do mestre, atomicamente falando - moral e espiritualmente falando seria incorreta tal afirmação, nisso estamos muito atrás de homem mais ilustre que tocou o solo - a palavra filho seria toda e qualquer matéria, já que ela é composta de átomos, criados por alguém. Em minha humilde opinião, por Deus. É difícil entrar na minha cabeça que o acaso criou absolutamente tudo que existe. É preciso muita inteligência para criar algo tão complexo, e nesse caso não foi o "algo" que foi criado. Foi o tudo. Ainda sou cabeça dura, pois não creio que o acaso seja nem mesmo um ser vivo. Para mim o acaso simplesmente não existe.
   Segundo a ordem universal, dois elementos já foram: Deus e a matéria. Faltaria um, e este devo expor com cuidado, pois ele é intimamente ligado ao terceiro elemento da Trindade Santa. Espírito Santo nasceu do latim, e se não estou muito enganado, facilmente este nome em sua língua de origem tem a letra "S" retirada do fim da palavra. Um erro de tradução, de adaptação às línguas latinas, pois muitas palavras latinas terminam com a letra e nem a metade dessa quantidade é um termo no plural. Seria como a expressão: "Res familiaris: bens de família". Então uma pergunta paira: e se o termo "espírito santo" for, na verdade "espíritos santos"? Nisso provavelmente fecharia o terceiro elemento restante da composição do universo. Se o plural do latim permanecer nas duas palavras, o universo seria composto por Deus, a matéria e por último o mundo espiritual, a real essência de cada ser.
   Nota-se por uma explicação dessas que o numero três é a definição de universos complexos, e que apesar de ser um número pequeno, parece dividir corretamente qualquer coisa. São três as partes do corpo humano (cabeça, tronco e membros), são três as divisões das ciências originarias da filosófica mente humana (ciências exatas, humanas e biológicas) e a vida tem três fases (nascer, crescer, morrer). Um mês tem aproximadamente três dezenas de dias. Os médicos verificam a saúde torácica com paciente com mais precisão se o mesmo disser trinta e três. A semana começa mesmo é na terça-feira, na segunda nunca temos ânimo, assim como acontece com o mês de ano novo e o carnaval, que são um preparo básico para o ano de labuta que está por vir, se iniciando no terceiro mês.
   Parece loucura, mas sempre procuro novas formas de escrita. Desta vez decidi escrever um livro com prólogo baseado no número três, para definir o que esta por vir. Os súperos de ordem biológica, física e química foram assim classificados para melhor entendimento.
   O mundo em que vivemos (nós, os seres racionais) se divide ao nosso ponto de vista em três: a razão, os sentidos e o desconhecido. Os sentidos criam paixões em nossas mentes - e nos faz compreender o que muitas vezes a razão não nos revela - e dividem-se novamente por três: artes, lazer e contato social. Das artes existentes temos três principais: literatura, musica e artes visuais (esta ultima derivou as outras, como artes plásticas e até cinema, uma mistura das três principais, que é composto, além das próprias imagens e até fotografia – que são artes visuais - enredo – que é a literatura - e trilha sonora – que por último é a própria musica, seja ela feita por instrumentos ou não). Das artes, a que me interessa expor a você nessa ocasião, obviamente, é a literatura.
   Existem três tipos de livros: os que lemos por obrigação, os que lemos por diversão e os que não lemos.
   Os obrigatórios se dividem em três outros grupos: escolares e didáticos (os que os professores nos aconselham a estudar para entender melhor como o nosso mundo funciona); os curiosos (os que nos obrigam a dar uma conferida, para conhecer por curiosidade o que poucos comentam num diálogo comum) e os best-sellers (os que vemos sendo vendidos aos milhões, e que muito provavelmente devem ser fantásticos, do contrário não seriam tão famosos).
   Os livros que lemos por diversão se dividem em outros três fatores: dissertação, descrição e narração.
A última citada tem por base três coisas: personagens (que falarei mais a frente), tempo e espaço. Estas três coisas dão vida ao enredo da narração. São vários os tipos de narração, mas a que interessa a mim aqui citar aqui é a ficção.
  A ficção é a forma de ser dizer coisas reais através de metáforas. Também é a maneira de se fugir um pouco da realidade, pois ela pode ser enjoativa, irritante e às vezes até mesmo perturbadora. Ficar sempre na mesma rotina pode levar uma pessoa à loucura. Uma das coisas mais complexas que existem ao se construir uma narração fictícia é a individualidade dos personagens, ainda que seja um ou vários. Como eu disse anteriormente, os personagens são um terço da história.
   Existem três tipos de personagens: principais, secundários e terciários. São classificados por nível de aparição e de importância no decorrer da história. Dos principais os heróis e os vilões são os mais freqüentes. Heróis são aqueles que todos querem ser, mas ninguém consegue ser, em tempo integral pelo menos. Vilões são os que estão em maior número, por que é muito mais fácil ser vilão que herói. É muito difícil ser herói porque só os que são fortes conseguem. Vilões são o oposto. Gente fraca tem por toda parte.
   Heróis se dividem em três tipos: os que são, mas não sabem que são; os que tentam ser comuns mais no fundo são heróis e os anti-heróis. Os que são, mas não sabem que são, ocorrem de maneira mais rara: compreende aqueles que lutam sem saber se sua luta irá resolver alguma coisa. Cansados eles lutam por que acreditam que se a vida fosse fácil e se ela girasse somente em torno de nós mesmos, ela seria muito sem graça. Nunca admitem que são heróis porque a humildade e a inocência não permite isso. Muitas vezes, se consideram tão normais e tão vulneráveis que pensam ser piores e anormais do que os próprios vilões. Sempre se perdem, mas sempre se encontram. Por perderem tempo demais em conflito consigo mesmo são incorruptíveis em sua relação com o restante do mundo, a menos que o mundo lhes mostre quem realmente são. Buscam ser anônimos. Os que tentam ser comuns, mas no fundo são heróis ajudam os que querem ir para o lado errado do mundo; sabem que não tem poder suficiente para salvar a todos, mas se conforma em salvar somente um que seja. Enfim, buscam ajudar os outros. Os anti-heróis são os vilões conscientes; aqueles que já foram vilões em alguma parte da história e se convenceram que existe algo errado nisso tudo, porque foram sacaneados a vida toda e de nada adiantou sacanear o mundo dando o troco. São os mais perigosos para os vilões, pois já foram um, e sabem como a cabeça de um vilão funciona. Também, possivelmente, são os mais violentos e resolvem problemas sem a menor sutileza, o que muitas vezes faz com que sejam mais amados que odiados. Eles, por ainda estarem em regeneração, têm o orgulho herdado de sua fase "vilã", se considerando os verdadeiros heróis, o que muitas vezes pode até ajudar. Buscam ser reconhecidos.
   Dos vilões temos (adivinhe...) três tipos: os que falham por prejudicar o próximo, os que falham por se prejudicarem e os que falham por nem prejudicar e nem ajudar. Sobre os vilões eu não quero me aprofundar muito, pois vários tem a oportunidade de ajudar e não ajudam, e só por esse motivo já são considerados vilões. Existem vários tipos, e eu passaria tempo demais falando sobre eles. Não me interessa muito os vilões. O que me interessa são as pessoas em geral. Personagens principais de suas vidas e secundários da vida social.
   Porque existem três tipos de pessoas: as que lêem, as que escrevem e as que têm preguiça de fazer as duas coisas. As que me interessam, lógico, são os leitores e os escritores. É por eles que ainda escrevo. Ser escritor no Brasil pode ser uma ofensa àqueles que são preguiçosos. Pode ser uma ofensa ainda maior para os que são manipulados.
   Existem três tipos de leitores: os que leram o prólogo deste livro por sentir interesse, os que não leram o prólogo deste livro porque estavam com preguiça e querem partir do primeiro capítulo em diante (seria o mesmo que ler este livro antes de ler "Súperos e a Chave Elemental") e os que não leram porque não tiveram oportunidade de ter esse livro em mãos. Aos que leram, agradeço imensamente. Não leram à toa. Se não lessem não saberiam o que vou alertar agora em seguida: a história deste segundo livro estará sendo narrada por uma das personagens da história (Yasmin), assim o livro fica um pouco mais real e se quebra a monotonia do escritor que aqui vos escreve. Aos que não leram, paciência... não vão entender o início da história direito porque deixaram de ler uma simples frase do prólogo.


   Carlos H. S.






















Capítulo Um
Rock Morto e Rádio Mortal


   Abri os olhos sem vontade nenhuma de acordar.
   Das coisas que eu menos gostava era acordar com o sol batendo na minha cara, e isso acontecia todas as manhãs, quando minha mãe me acordava. Até que já tinha me acostumado com essa parte. A parte ruim era estar, ou melhor, não estar pronta para ir para o colégio. Sempre acordo sem fome e sem animo. Sempre peço cinco minutinhos a mais para minha mãe, mas nunca resolve.
   Olhei para o espelho trincado em meu guarda-roupa e vi uma menina baixa, não muito magra e nem muito gorda, com cabelos lisos negros e bagunçados, grandes fios cobrindo um rosto de quem ainda estava sob ressaca matutina. Meu piercing brilhava de longe, com luz do sol refletida na minha narina direita.
   Os pôsteres dos meus ex-ídolos jogados no canto do meu quarto com fita adesiva embolada me alertavam. "Acorda Yasmin, o rock não pode parar...", refleti e me lembrei que tinha desistido do rock, e enquanto me levantava e vestia agora minha calça surrada e com rasgos distribuídos pelo jeans desgastados. Peguei o all-star velho que estava a alguns metros de mim ainda bocejando como punks em época de eleição, coloquei minha mochila nas costas verificando se o celular estava em um dos bolsos de minha calça, o que por sinal estava, porque eu nunca o tirava de lá, e parti para a sala.
    No caminho tropecei no fio da internet conectado em meu modem obsoleto, agradecendo a Deus por ele ter durado tanto tempo. O cheiro forte e nauseante do café que era coado na cozinha poderia ser a explicação pelo descuido.
   - Seu irmão mandou lembranças - disse meu pai enquanto tomava café com açúcar e comia um pão farto de margarina.
   - Serio? Falou com ele por telefone?
   - Sim, agora a pouco. Até quando vai continuar com isso?
   - Sinto falta dele... hã? Isso o quê?
   - O piercing Yasmin - respondia minha mãe pelo meu pai.
   - Sabiam que foi o mano que me ensinou ter paixão por essas coisas?
   - A barulheira de antigamente até que aturamos, mas isso... Você é muito mais bonitinha sem isso...
   Lembrei-me de quando cheguei em casa com o piercing sem avisar a minha mãe. Quase que enfarto a mulher.
   - A "barulheira" é punk rock hardcore, e ele era minha válvula de escape deste mundo injusto. Sorte de vocês que tirei da minha cabeça e coloquei só Jesus. E tão se acostumando com o piercing... Tão falando menos vezes dele... Para Jesus a aparência é o de menos.
   - Teu irmão criou responsabilidade e até já se casou.
   - Ele é mais velho que eu - respondi enquanto comia uma bolacha de chocolate.
   - A questão não é essa, ah, esquece! - Ele desiste fácil.
   - Olha a hora mocinha...
   Depois de olhar o despertador "voei" para o banheiro e escovei os dentes. Quando eu queria ser rápida eu conseguia. A água da pia me ajudou a acordar direito.
   - To indo. Beijo mãe.
   A algum tempo, “naquela época”, eu bem que queria fazer um corte moicano, mas eles iam achar que eu estria usando drogas, aí eu desisti.
   Antes de ir vi que estava esquecendo um livro na mochila - a achei leve demais - e voltei ao quarto quando ouvi um barulho estranho que vinha do alto do guarda-roupa. Era uma mariposa se debatendo contra uma caixa de sapatos que juntava poeira e teias de aranha. Sem pensar duas vezes tirei o all star e arremessei na caixa. Ambos caíram no chão com um barulho oco típico de uma caixa de papelão.
   - O que esta havendo? - Meu pai entrou pelo quarto mais rápido que o tênis que tinha jogado.
   - Nada - respondi de imediato - é só um inseto.
   - Pelo barulho pensei que fosse um urso.
   - Rá ra. To indo - retomei  a mochila com os livros dentro e calcei novamente o calçado velho, odiando mortalmente a monstruosidade alada, desejando que se engarranchasse em alguma casa de aranha. Odeio insetos. Talvez o ecossistema fosse afetado com a ausência deles, mas por mim eles nunca teriam sido criados. Por último decidi não olhar para o espelho novamente. Meu desânimo poderia ser aumentado se me visse de novo, agora mais acordada eu poderia me assustar com o rosto mais detalhado, cheio de espinhas horrorosas além dos defeitos já citados anteriormente. Tentei sorrir para melhorar minha fisionomia.
   Era o fim do primeiro semestre, e eu torcia para as férias chegarem logo. Nada mudava: os mesmos asfaltos cheios de buracos, as mesmas casas humildes no caminho para o ponto de ônibus, os mesmos lotes baldios cheios de entulho – herdei o enjôo das paisagens rurais da minha época de rock - o mesmo ponto de ônibus cheio de números de telefones do tipo "procura-se homem", que eu nem fazia questão de ler tudo. As coisas eram mais fáceis quando eu era criança, agora aos quinze estava começando a perder fé na humanidade.
   O ônibus, lotado para variar, tinha o frio absorvido por suas paredes de metal, então, tanto fazia ficar lá fora ou lá dentro, a temperatura era a mesma. Quando começou a lotar "realmente" - acredite, existem ônibus lotados e ônibus LOTADOS - esquentou, mas era um calor abafado. Aliás, tudo era abafado: o calor, a respiração, os gritos das crianças. Tudo.
   Quando saí do ônibus o frio impregnou meu rosto, e eu sabia que aquilo não ia durar a manhã inteira. As vezes durava, mas era raro. Logo o sol do meio-dia estaria iluminando a minha saída do meu primeiro dia de aula, no velho colégio, na velha sala.
   O colégio não mudara nada ao longo dos anos. Os mesmos imbecis me apontando como se eu fosse um acidente da natureza. Lá eu era. Era uma goianiense que antes curtia rock ao invés de modão e musica eletrônica, como todo mundo costumava gostar, e que agora não curtia nada em especial. Agora tinha largado o rock e curtia outras coisas, ou então nada. Curiosamente as pessoas que ficaram minhas amigas aqui são isoladas por algum motivo; ou são inteligentes demais, ou são gordas, ou são negras, ou coisa do tipo. Eu obviamente nasci no estado errado, talvez até país errado. Embora eu não seja muito fã dos Estados Unidos e de seu capitalismo envolvente - deve ser porque eu era punk, ou pobre, ou as duas coisas - lá eles aceitariam uma ex-rockeira com maior tranquilidade do que aqui. Se ainda fosse, estaria mais revoltado do que estou. Ah. E lá eles tem bem mais protestantes que aqui. Aqui o catolicismo reina.
   Redação. Horrível. A aula e o professor. O que me deixava mais anormal ainda do que o meu visual era as minhas preferências escolares: arrebentava em física, sacava tudo de química e amava matemática, álgebra principalmente. Quando se tratava de textos eu era meio desanimada, porque estranhamente entendo em segundos funções exponenciais, mas não sabia a diferença de aposto e vocativo. Se professores ganhassem bem eu até que prestaria vestibular para física no fim do ensino médio... mas até lá tem muita coisa para acontecer, nem preciso me preocupar com isso por enquanto. O que me interessava agora, no segundo semestre do primeiro ano, era recuperar as notas de história.
   A única matéria que me fascinava em termos de letras, mais do que números, era filosofia. Mas infelizmente escola pública não tem filosofia - se tem ninguém avisou para a nossa diretora – então o jeito era tolerar os textos históricos. É estranho eu gostar de filosofia e não gostar nem mesmo de literatura, eu admito, mas acho muito massa as viagens que os caras faziam quando não tinha nada para fazer. Eu vivia me distraindo, pensando nessas coisas no meio da aula - principalmente se na aula ficavam enchendo o meu saco - porque eu tinha lido alguns livros sobre filosofia e era uma coisa mais louca que a outra. Acho que os caras da Grécia antiga eram punks; primeiro porque defendiam os seus ideais mesmo que isso custasse-lhes a morte; segundo porque eles ficavam no ócio para montar suas teorias. Os matemáticos, por exemplo, diziam que Deus era o geômetra supremo, e que ele criou tudo com base na matemática; o movimento dos planetas, o tamanho do universo, tudo. E eles diziam umas coisas dessas do nada. Como não tinham nada para fazer ficavam pensando. Bando de à toas que inventaram as origens reflexivas da humanidade. Bando de rockeiros. "Trabalhar para que...", eles deviam argumentar, “... o trabalho nos cansa, e cansados nós não pensamos. Vocês, todos vocês são fantoches do sistema, porque trabalham demais para ele e nunca pensam por si mesmos...". Maneiro. Mas sempre quando fico com o olhar parado pensando nessas coisas, vem alguém e me atrapalha. Em casa meu pai pede para eu acordar, e na escola quem faz isso são os caras que nós sabemos que são aqueles galinhas que insultam os nerds, e que são inevitavelmente massacrados por eles no futuro, lá na concorrência de mercado. Posso não ser nerd, mas sou observadora.
  Logo quando eu estava pensando nisso tudo um deles vira meu cabelo do avesso e diz alto: "acorda!", aí eu meto um murro na costela e ele vai atentar outro que esta viajando na maionese como eu, ou alguém que esta tirando uma soneca na primeira aula. Às vezes a escola é um saco. O que salvava era a queimada na educação física.
   Como eu disse não entendo muito da história humana, mas acho que o que é necessário para viver é coragem e resignação. E nem preciso saber da evolução histórica para entender isso. Temos que servir aos vermes, mesmo que isso nos custe à morte. Cristo foi um exemplo disso, não tenha dúvida, mas é tão difícil... E é uma missão que dá medo. Será que Jesus era sobre-humano? Deve ter se superado muito para aguentar os vermes ignorantes. Acho que a maior superação está nisso: suportar e ajudar os ignorantes. O que pega é que os ignorantes nem sempre querem ser ajudados. Que porcaria. É mais fácil ser uma pessoa normal. Mas talvez seja normal ser diferente. Ou nem sempre. Sei lá, não sei de mais nada.
   Acho bastante anormal a pessoa que inventou as igrejas. Não do modo pejorativo, mas do modo sinistro e violentamente criativo de como foi montado o teto das igrejas. Já percebi isso; todas as igrejas apontam para o céu. Parece mensagem subliminar... O cara que pensou nisso deve ter tido um QI de um milhão, porque nem deve ter pensado muito. "Muito bem, os fiéis querem um lugar para rezar, um lugar mais perto de Deus, mais perto do céu, onde quando se entra neste lugar e se olha para cima para orar ao senhor de tudo, ela sinta que o teto seja alto, estranhamente fascinante e profundo. Vamos fazer um teto em forma de cone, ou então uma pirâmide..." Olha aí a matemática - mais filosófica do que nunca - novamente. Só que desta vez, em forma de geometria.
   No término da aula o mesmo trajeto rotineiro: as ruas, já com bem mais carros do que de manhã estavam lotadas de alunos que saíam das aulas; uns indo para o ponto de ônibus, como eu; outros trocando de camiseta para não serem reconhecidos entrando em lan-houses; casais adolescentes - ou pré-adolescentes -  se esfregando em sombras de árvores, quando o sol ocupava o meio do céu, um experimentando a boca do outro como se aquilo substituísse um almoço que já estava por vir. Cenas que todos estavam cansados de ver e que não era tão absurdo. Podem até pensar que sou mal humorada, mas não sou. Sério. To dizendo só o que eu percebo, sou palhaça até demais as vezes, quando brinco com minhas amigas. É que não há muitos motivos para eu ficar com um sorriso no rosto, com tanta coisa acontecendo de ruim, fora as que não são noticiadas pela mídia. Acho que Deus criou os animais com asas primeiro. Acho que ele não deu asas às cobras porque elas iam ser criadas depois dos pássaros, e as vezes criaturas novinhas tem pouca malícia. Ou quase nenhuma. Não se dá liberdade a quem não sabe o significado disso ainda. Foi nisso que eu pensei quando vi um guarda obrigando vários a irem para a casa logo e pararem de vadiagem.
   O engraçado é que depois de mais um dia de aula, estava me sentindo meio estranha. O sol parecia mais quente e eu estava mais cansada do que o habitual. Não era consequência do tempo que estive longe da escola. De repente cruzei uma rua para ir ao ponto de ônibus e lá estava eu, cada vez mais tonta. Depois comecei a me sentir nauseada. Passei suavemente a mão na testa, mas não achei que estava com febre, e a esta altura já estava com o corpo dolorido. Estava aumentando. Nunca tinha sentido isso em minha vida. Sentei no ponto de ônibus exausta e fui surpreendida por uma mulher.
   - Está sentindo isso?
   - O que? - estava ruim mesmo, quase não a escutei - Sentindo algo estranho?
   -É - confirmou ela a mim - também estou passando mal. E meu filho - e ela parou de falar e apontou para uma poça de vômito diante de um menino sentado ao lado dela, de mais ou menos sete anos.
   Só depois percebi que o ponto, como sempre estava lotado de estudantes, mas todos estavam encostados em paredes de bares espalhados por detrás do ponto, ou sentados no chão sem se importar com formigas ou cocô de cachorro. Definitivamente não era só eu.
   - O que está acontecendo aqui? - perguntei a uma das garotas a alguns metros de mim, o sol insuportavelmente quente.
   - Não sei - ela só quis dizer isso. Provavelmente estava enjoada como eu, ou mais que eu por estar lá a mais tempo.
   A medida que os ônibus chegavam, atrasados e lotados como de costume, o ponto foi se esvaziando, mas a sensação de imenso mal estar permanecia. Então uma coisa mais estranha ainda aconteceu.
    Um dos ônibus parou, e ficou muito tempo no ponto - o povo tava louco para sair do lugar e eu também, mas ainda não tava a fim de enfrentar empurra-empurra - e então até o motorista começou a se sentir mal. Assim que fechou as portas empurrando o pessoal para dentro do ônibus ele acelerou e vinha uma criança atravessando a rua atrás de uma maldita bola. Bati em retirada dando socos na lateral do veículo e consegui acordar o motorista com meu pânico - sabe lá se estava embriagado ou só passando mal mesmo. O problema foi que no meio do caminho eu pisei numa tampa de metal e ela revirou. Com o meu peso eu desci direto e caí no buraco mal tampado. Demorei quatro segundos para aterrissar lá em baixo. Quando vi estava num poço. A muitos metros debaixo do asfalto eu ouvia a gritaria, e fingia que não estava toda ralada e com uma das pernas provavelmente fraturada.
   - Ei, mocinha! Está me ouvindo?!
   - ESTOU! PEDE AJUDA! - gritei. Não ouvi a voz de quem me chamava muito forte. Deveria estar gritando, mas a distância era muita.
   - Aguente firme! - ouvi a resposta, e quando ouvi senti a mochila embaixo de mim. Pelo menos alguma coisa amorteceu a queda. Porém, depois que eu caí, o mal estar aumentou significativamente.
   Foi então que algo me despertou. Algo que sempre me desperta. Baratas. Mariposas eu odeio, baratas mais ainda. Muito provavelmente eu caíra em um esgoto, mas todas as baratas e insetos estavam mortos. Segurei o grito quando vi que meu pé estava em cima de um rato morto. Era estranho, tudo morto em meu redor, mas nada estava com aparência esmagada. A pouca luz que entrava me revelava que os bichos já estavam mortos quando eu caí. Eu só consegui perceber isso. Foi então quando senti que uma dor de cabeça violenta tinha me atingido. E quanto mais eu estava perto de um determinado lado do poço - que eu tinha percebido que não era de esgoto, sei lá, tava sem cheiro ruim - a dor aumentava. Me virei em direção ao canto que me incomodava e vi que o local estava luminoso não pela luz do sol, e sim por uma coisa presa numa falha de tijolos.
   Senti a coisa brilhando forte demais. Virei-me com cuidado no poço apertado e senti mais dor na cabeça do que eu jamais teria sentido em toda mina vida. Esbarrei sem querer a mochila na parede luminosa tentando evitar um dos nojentos cadáveres de rato e a luminosidade aumentou, olhei para ela e senti enjôo. Parei e senti minha pressão cair enquanto fazia esforço para não vomitar. Foi quando percebi. "Vou desmaiar", pensei. Quando imaginei isso minha cabeça queimava no buraco. Fechei os olhos e logo em seguida apaguei.



































Capítulo Dois
O Soldado Branco


   Abri os olhos no quarto iluminado e senti um desconforto de dopamento. Percebi os curativos em várias partes do meu corpo e senti um inconfundível cheiro de hospital. Aliviei-me. Sobrevivi.
   Senti uma formiga andando na lateral da minha cama. Quase rompi a mangueirinha que me conectava no soro fisiológico tentando matá-la. Desejei fortemente que ela saísse dali, porque a última coisa que eu gostaria agora era um inseto andando em mim toda quebrada. Quando eu a olhei diretamente ela saltou em direção ao chão. "Ótimo, deixa eu aproveitar a minha dor em paz" pensei, mas foi aí que percebi que meu corpo estava bem. Pensei que tinha quebrado a perna, mas só a machuquei. Para dizer a verdade, e eu custei acreditar nisso, não estava sentindo dor alguma. Mexi meu corpo num pensamento de pânico de talvez estar paralítica, mas Deus não deixou isso acontecer. Alguém do meu lado viu que eu me mexia nessa hora e apoiou suas mãos em mim, me parando.
   - Calma que você ainda não está totalmente recuperada.
   Reconheci a voz de minha mãe. Logo em seguida ela chamou meu pai, e acho que ele ligou para metade da família contando que eu tinha acordado.
   - Como se sente?
   - Bem, mas me sentiria melhor se parasse de chorar - vi o olhar borrado dela em cima de mim. Deve ter chorado horrores.
   - Você é mais forte do que eu pensava minha filha...
   - Puxei à senhora. O que aconteceu realmente?
   - Você caiu num buraco - aí me lembrei do acontecido - quando a encontramos estava quase em estado de coma...
   - Credo! Vou ficar aqui muito tempo?
   - Estávamos esperando você acordar para decidir isso...
   - Yasmin?
   Alguém me chamou a atenção. Vi de relance e um homem de branco me observava, agora de perto. Era muito magro e usava óculos que refletiam a luz o sol de forma forte. Quase me cegou quando o reflexo bateu na minha cara.
   - Doutor? Pode me dar alta agora? - arrisquei - odeio hospital.
   - Ele não é o médico minha filha - disse minha mãe.
   - Eu sou - entrou no quarto um cara plantonista - demorou a acordar em mocinha...
   - Por quê? Quantas horas?
   - Que eu te espero? Mais de quarenta e oito - respondeu o rapaz do meu lado, e só agora tinha visto que era bem jovem, e bem alto.
   - Quê? Estou aqui a dois dias?! - mina voz estava fraca, e só agora percebi que estava com uma fome dos diabos.
   - Três - respondeu o outro cara sentado, me corrigindo - cheguei aqui um dia depois do acidente.
   - Vão conversar agora? - perguntou o doutor ao rapaz, que em seguida balançou a cabeça afirmativamente - Vou deixá-los a sós então.
   E então ele saiu do quarto. E foi só.
   - Alguém pode me explicar o que esta acontecendo aqui?
   - Calma Yasmin - agora era meu pai falando - o rapaz já nos deu o maior apoio enquanto você não acordava. Ele que nos explicou tudo...
   - Tudo como, se ele nem estava lá? Ou eu passei tão mal que nem te vi?
   - Não estava mesmo - agora ele fazia um gesto para meus pais se sentarem nas cadeiras do quarto, e então ele imitou o gesto se sentando também - expliquei tudo sobre o Rádio.
   - Desculpe? - achei que nem tinha entendido direito.
   - No buraco onde você caiu, no poço, cisterna, sabe-se lá o que era aquilo, estava cheio de radiação. Cheio do elemento Rádio. Você ficou exposta a radiação tamanha que quase te matou. Seus pais, a nosso pedido, não deram alarme na mídia. Ninguém pode saber sobre isso.
   - "A nosso pedido"? Quem é você?
   Ele deu um sorriso tímido para esconder uns dentes meio tortos e depois respondeu:
   - Estou representando um colégio, o Instituto de Jovens Súperos. Meu nome é Carlos - e ele se levantou me estendendo a mão.
   - Prazer, mas não entendi nada – disse a ele enquanto o cumprimentei com a mão enfaixada.
   - Eu sei Yasmin, vou explicar com calma...
   - Está com dor de cabeça?
   - Não... porquê?
   Apontei para a faixa prateada presa em sua cabeça e ele se sentou rindo. A faixa era longa e brilhante.
   - Isso é um presente dos meus pais. Bem, esta fazendo o primeiro ano, certo?
   Minha mãe deve ter feito um relatório da minha vida para o desconhecido, mas só depois lembrei que ele deveria estar com eles há dois dias.
   - Certo. Olha, obrigada.
   - Pelo que?
   - Por ter ficado com meus pais.
   - De nada - respondeu ele meio tímido - interrompi minhas aulas para te recrutar, o Diretor anda ocupado demais...
   Meus pais estavam quietos. Com certeza tinha inteira confiança no garoto. Comecei então a ver que ele era bem simples.
   - Porque o branco?
   - Amo usar branco. Eu fico mais legal. Eu acho.
   - Ah sim, agora me lembrei - o brilho da faixa que eu só então consegui perceber que era prateada me trouxe de volta às dúvidas - Instituto de quê?
   Mais uma vez ele sorriu de meu jeito espevitado de perguntar as coisas, na lata.
   - Instituto de Jovens Súperos, o IJS.
   - Você estuda lá?
   - Sim. E provavelmente você vai estudar lá também, e na minha sala, pelo que vi. É a que tem menos alunos...
   - Quantos anos você tem rapaz?!
   - Quinze - respondeu ele.
   - É bem altinho para ter quinze anos...
   - Yasmin! - meu pai me corrigia enquanto Carlos pedia por um simples gesto para ele parar.
   - Todos se assustam com minha altura...
   - Por que diz que vou estudar lá?
   - Por sua segurança.
   - Não vou mais cair em buraco nenhum - prometi enquanto ele ria novamente.
   - Não é do buraco que vão te proteger. Talvez a protejamos de seu próprio poder. Só a localizamos, não sabemos seu poder ainda. Lá seus poderes se manifestarão sem a descoberta de quem não está preparado para descobrir nossa existência. Não é certeza, não somos muito sofisticados, escola do governo, já viu né... Mas vamos tentar...
   - Poder? - perguntei irresistivelmente enquanto ele continuava.
   - Yasmin - ele deu prosseguimento na explicação - já disse com detalhes aos seu pais, então direi a você agora, mas sem mais detalhes, porque o tempo é curto. Existem três destinos para os seres que se envolvem com acidentes radiológicos ou radioativos. A morte; a vida com deficiências, como é o caso de ter transformações genéticas depois da fase de mudanças hormonais que alteram o DNA, que é a fase da adolescência; e a vida com superações. Esse último destino aconteceu com você. Apesar de raro acontece de um súpero nascer assim. Já se nasce súpero, como eu acho que aconteceu comigo, quando a mãe grávida se envolve com tal acidente ou coisa parecida. Resumindo, você é um súpero agora, um ser humano que se superou geneticamente ao ficar exposta a radiação.
   - Que viagem cara! Ta maluco?! - fiquei indignada.
   - Filha, o que foi?!
   - Pai, você acreditou nele? Que história é essa de poderes e de transformações, isso não existe! Se você é um desses então, que poder você tem?
   Rapidamente Carlos se levantou e ergueu a cama como se fosse feita de papelão, e fez sem a menor dificuldade, sorrindo para mim.
   - Caramba!!
   - Acredita agora? - perguntou ele me colocando no chão novamente - tenho uma velocidade acima do normal também.
   - Sério? - me animei com o poder do garoto - que dizer... acredito em você...
   E em um piscar de olhos ele estava sentado. Era sem dúvida muito rápido. Mais rápido que o olho humano.
   - Isso é coisa de... sei lá... que viagem cara... que poder eu tenho?
   - Como eu disse, não sabemos. Por enquanto só localizamos os súperos assim que um deles surge no mapa do centro-oeste. Na verdade eu sou de São Paulo, mas as vagas da outra escola de minha região estavam lotadas, então estou estudando aqui.
   - Caramba... demora quanto tempo para o poder aparecer?
   - Varia de súpero para súpero. Yasmin, precisamos levar você assim que ter alta no hospital... se ficar aqui fora pode ser arriscado... se seu poder aparecer no meio de muita gente...
   - Por que ninguém pode saber de vocês, digo, de nós?
   - As pessoas iriam se aproveitar disso...
   Não foi muito difícil imaginar isso. Por isso ninguém nunca tinha ouvido falar do colégio ou dos tais súperos. Tudo estava claro, até a confiança dos meus pais com o garoto; se ele quisesse fazer mal a mim ou a eles já teria feito há muito tempo, afinal, ele é forte demais...
   - Estou encantada com isso tudo. Deveria estar com medo do meu poder, mas estou encantada...
   - Sei como é - agora seu sorriso era o maior que ele dera - fiquei assim quando me acharam.
   - Como vocês acham os súperos com tanta precisão?
   - Não sei. Só quem sabe é o diretor... Tem mais uma coisa Yasmin.
   E então ele se lembrou do que estava para dizer.
   - Protegem os súperos de seu ego também, nesse nosso colégio. Não se pode combater o crime por ai. Pode ser, e é perigoso. Não é aconselhável por ninguém reagir a assaltos, por exemplo. Mesmo tendo poderes sobre humanos...
   - Entendi... esse colégio é um internato? Como ninguém pode ficar sabendo de nós...
   - Sim. Infelizmente, para sua proteção, você, junto a nós, verá seus pais só no fim do terceiro ano. É assim com todos nós. Mas pode enviar cartas se quiser. Sempre envio aos meus pais, e eles respondem de volta.
   - Sei - percebi que minha mãe fez uma cara triste; primeiro meu irmão se casa e obviamente deixa de morar com a gente, depois eu sair para minha própria segurança... que chato - e onde fica esse colégio?
   - Outro segredo que nem nós alunos sabemos. Só se é revelado que fica em algum lugar do estado goiano. Onde exatamente, poucos podem saber.
   - Vocês confiam na proteção e no silêncio do governo?
   Essa pergunta o confundiu.
   - Porque não acreditaríamos?
   - Tem muito corrupto lá... sei lá...
   - Entendo sua preocupação. Mas é mais ou menos como eu disse: poucos sabem sobre nós... afinal, o poder dos súperos, penso eu, pode ser infinito. Tem poder de tudo que é jeito...
   - Infinito? - questionei.
   - Tudo que é desconhecido é infinito para quem o desconhece, não?
   Refleti muitos segundos até responder com base no tamanho do universo que o homem jamais conseguiu "medir". O garoto era inteligente.
   - Acho que sim... que filosófico...
   - Minhas crenças são baseadas na razão. Assim como não vejo razão para não acreditar em Deus. Todo efeito tem sua causa não? O que o homem não criou foi criado por algum outro ser... Mas isso é outro assunto, que pode até ofender quem não crê n'Ele.
   O garoto era inteligente até para mudar de assunto. Lembrei que ele disse que era de São Paulo, e nem tinha sotaque de nenhum dos dois estados que conheceu. Fiquei com vergonha de meu sotaque meio caipira.
   - Mais alguma pergunta?
   - Sim... posso perguntar? Sou muito curiosa as vezes...
   - Não é pra menos. Continue.
   - Bem, existem súperos em outros países?
   - Acho que eu ouvi uma vez em algum lugar que existe uma escola em algum lugar na China, bem isolada como a nossa. Lá estudam os súperos de outros países. A concentração de súperos no Brasil é muito mais, digamos, gigantesca...
   - Por quê? Porque no Brasil existem mais súperos? Quantas escolas têm no Brasil além do IJS?
   - Uma para cada região... Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. Cinco então. Lá fora acho que tem só umas três ou duas.
   - Mas por quê?! - estava eufórica.
   - Existe um outro fator que facilita o aparecimento de superação quando um humano é exposto à radiação. A miscigenação. Talvez o Brasil seja o país onde se encontra a maior variedade de raças, a mistura pode ampliar o fator de adaptação do DNA humano às diferentes situações, inclusive situações de exposição à radiação. Pode ser a miscigenação que faz com que a radiação se torne uma coisa fantástica no organismo de alguém, ao invés de uma coisa caótica. O reino vegetal e animal do Brasil é muito diversificado...
   - Existe superação em plantas e animais?! - acho que parar fazer essa pergunta a Carlos, eu tinha arqueado as sobrancelhas sem perceber. O olhar dele se divertia com minha reação, por trás dos óculos.
   - Por que a surpresa diante disso? Depois de tudo o que você descobriu hoje, isso não surpreenderia a mim. Principalmente quando se trata de reino animal. Também somos do reino animal, não somos?
   - Uau, você e inteligente... - o elogiei. Estava fascinada com sua habilidade de explicação.
   - Bom - justificava ele meio sem graça - tive que estudar um pouco sobre os súperos antes de vir te conhecer...
   - Estudou em livros?
   - Não. Não existem livros sobre súperos porque isso não pode ser divulgado ainda. Tudo que estou te falando eu aprendi com os professores e com o diretor. Estão acompanhando o que acontece com o mundo de tempos em tempos.
   Já tinha passado algumas horas desde que conheci Carlos, e eu fazia pergunta atrás de pergunta. Bombardeei o menino com questões que eu achava incríveis de ocorrer na realidade prática, e que já estava acontecendo a alguns anos. O que mais me impressionou foi à explicação dele sobre a liga suprema. E isso acho que ele não tinha falado para meus pais.
   A Liga do Bem, um grupo antigo de heróis - e que eu tinha certeza de que não eram normais - foram exterminados pela liga suprema. Não foi noticiado, e todos acharam realmente muito estranho que a Legião tivesse parado de agir de uma hora para outra. Até eu, que era pequenininha na época, achei estranho. Está aí a explicação. A liga suprema existia secretamente, claro, e eram odiadores da minoria - e isso inclui, segundo Carlos, os judeus, os obesos, os negros, os homossexuais, os deficientes, e os súperos, que também faziam parte da minoria. Terroristas mais antigos talvez que os nazistas que pregavam a harmonia com base em extermínio das coisas que para eles traziam o desequilíbrio. Pessoas diferentes, por exemplo, faziam mal a sociedade. Mal sabiam eles que ao contrário do que pensavam, e pensam, os diferentes é que fazem a sociedade evoluir. São os diferentes os que mais pregam a paz humana. Uma falta de interpretação com base em "pré" conceitos já trouxe milhões de mortes ao longo da história. Os livros provam isso. Da história só gosto das partes que narram a opressão, porque ela sempre aconteceu e todos andam e agem como se fosse uma coisa distante, mas será viva essa diferenciação psicológica por muitas gerações.
   Carlos me explicou também que aprendera recentemente com o diretor o que poucos alunos podem saber, porque até os súperos podem ter a mente perturbada com revelações do qual ainda não estão preparados: os súperos são divididos em categorias, ou melhor dizendo, ordens. De acordo com a modificação de seus poderes e com a natureza desses poderes, os súperos podem ser de ordem física, ordem química e ordem biológica. Havia também outra classificação, que dizia que os súperos poderiam ser de tipo A, B, C e S, conforme seu nível de poder. "A" para os mais fortes, "B" era um nível intermediário entre "A" e "C", e C para os que tinham poder de pouca gravidade. Os de tipo "S" eram tão poderosos quanto os de tipo "A",mas seu poder era tão grande que eles não tinham controle total sobre ele, sendo algumas vezes perigosos para si mesmos e para os outros seres vivos ao seu redor.
   - Qual das classificações está sendo mais aceita? - perguntei a Carlos.
   - Ainda estão sobre estudo e supervisão de especialistas, portanto não tem exatidão ainda nessas teses. Mas as duas teses fazem sentido...
   - Se for comprovada as duas, você se encaixa em qual das classificações?
   - Segundo o diretor eu seria um súpero de ordem biológica, por ter o meu poder manifestado de forma biologicamente, e seria de tipo "A".
   - "A"? Sério?
   - Se for comprovado, eu seria um dos poucos, senão o único súpero de tipo A. Eu e um outro súpero.
   - Quem? - fiquei curiosa pra caramba.
   - Um que deu trabalho para nós semestre passado, lá no colégio, e que desapareceu. Mas prefiro não falar dele agora. Tenho coisa mais importante para dizer a você.
   Percebi um nível de frustração por parte da fisionomia dele. Quanto a esse assunto eu me quietei. Diante disso só perguntei:
   - Que coisa mais importante? Tem ainda mais coisa para você me explicar? Quero dizer, não que eu ache ruim...
   - Eu sei - ele riu da minha correção sem jeito - só preciso lhe explicar mais uma coisa. Mas antes preciso de uma resposta direta. Você decide ir estudar no Instituto ou não?
   Olhei para meus pais, e então eles responderam por mim.
   - Ela vai, Carlos - meu pai respondeu - é claro que vamos sentir muitas saudades, mas é o ideal para a segurança dela.
   - Vão ficar bem sem mim? Primeiro meu irmão sai de casa e agora isso...
   - Não se preocupe com isso filha - disse minha mãe - nos encontrará de novo.
   Quando é para o bem dos filhos os pais passam por qualquer coisa...
   Vi Carlos se encolhendo quando ouviu minha mãe. Deveria estar muito preocupado com seus pais.
   - Ok - começou ele com um sorriso, arranhando a faringe com a respiração como alguém nervoso que ia começar um discurso - fico feliz em receber você, aliás, todos nós ficamos.
   Nesse momento Carlos pegou uma mochila preta que eu só agora percebi que estava largada no chão ao lado dos pés dele, pegou uma passa e ela tirou alguns papéis. Passou os papéis aos meus pais e não me contive com a curiosidade.
   - Papéis de matrícula? De autorização?
   - Não. Isso implicaria em deixar alguma certificação a eles, e correria o risco de alguém descobrir estes documentos. Além disso, o governo ainda não decidiu o que fazer com os súperos, porque oficialmente eles não existem, e obviamente o ingresso na escola depende da vontade do súperos e da família dele. Dei os papéis para eles passarem para você depois. São os esquemas do colégio.
   - Esquemas? Como assim?
   - A única coisa que você vai ficar sabendo depois, quando eu te buscar depois que você já estiver restaurada, será em qual dos primeiros anos você vai estudar. Tenho que conferir com o diretor. Ele não resolveu isso ainda porque teria possibilidade de você rejeitar o convite. Fora isso, nestes papéis está o horário de banho, de aula, das refeições, dias em que alguém vai cortar o cabelo dos súperos, mapa da propriedade do IJS...
   - Entendi. Cortam de muito em muito tempo?
   - O quê? - perguntou ele confuso.
   - O cabelo...
   - A respeito dos cabelos dos alunos - respondia o garoto enquanto fechava o zíper da mochila - só tenho conhecimento dos xampus, que lá sempre são colocados novos. Alguns têm xampus e itens de higiene próprios, pois tem poderes relacionados com os cabelos ou com a pele e etc. Eu não sei de muitas outras coisas sobre cortes porque nunca nem vi quem corta o cabelo dos alunos.
   - Por quê? - notei que o cabelo dele era volumoso e bonito, uma cor preta que brilhava sob a luz da sala.
   - Nunca cortei o cabelo na minha vida.
   Essa até meus pais se assustaram.
   - Como assim?!
   - Meu cabelo nunca cresceu muito, só até esse tamanho. As unhas também. Depois que parou de crescer meus pais se preocuparam, mas nunca descobriram o porquê disso. Aí um dia por curiosidade tentei agarrar um de meus fios e cortar com uma tesoura. Não deu certo...
   - O que aconteceu?
   - Acho que até meus pelos são indestrutíveis... apesar de ter aparência de cabelo normal, que se penteia e tudo, já tentei de tudo naquele dia para cortar um fio que seja. Entortei a tesoura inteira e não consegui. Quando pus muita força, na segunda tesoura que encontrei, o parafuso que unia as lâminas pulou fora da tesoura. Tivemos que comprar tesouras novas.
   - Uau! - fique impressionada com a resistência - então você só o lava?
   - Sim. Ele se dobra como qualquer outro fio de cabelo, mas é mais fácil cortar arame que cortar meu cabelo, apesar dele ser bem maleável. Bem - e então ele se levantou - eu já vou indo.
   - Já? - o achei sinistro, mas ao mesmo tempo muito legal.
   - Tenho que dar a resposta para o diretor. Segunda-feira eu te busco. Você terá alta hoje, poderá se preparar. Dei nos papéis - disse ele apontando para os documentos na mão de meus pais - a localização do ponto de ônibus. Geralmente vai para o colégio de avião, mas sua casa é bem perto do IJS. Semestre passado houve uma confusão danada, e os alunos tiveram que ir para São Paulo pegar o avião que levava para o Instituto.
   - Por quê?
   - Certa pessoa causou um caos aéreo, mas isso é outro assunto. Ainda bem que virou coisa do passado.
   Carlos estendeu a mão para mim. Nem vi quando tinha se aproximado. O cara era muito rápido.
   - Espero você lá, Yasmin - disse ele enquanto eu apertava sua mão. Ele fez questão de não apertar. Se apertasse eu ia ter a mão quebrada. Acho que quanto mais forte a pessoa é, mais cuidado ela deve ter com sua força, para não ferir os outros que são menos fortes ao seu redor. Percebi isso ao conhecê-lo.
   - Estarei - respondi.
   Carlos partiu. Houve um silêncio no meu quarto depois que ele se despediu de meus pais e nos deixou.
   - Vai ficar tudo bem Yasmin - assegurou meu pai.
   - Eu sei - respondi. 
   Quando recebi alta e cheguei em casa tive receio de acordar do sonho, mas fui para a cama e acordei lembrando que nem ia sentir falta dos agora antigos "coleginhas" de sala. Lembrei-me disso quando minha mãe colocou uma mala de viagem verde escura no sofá de casa, uma que eu não vi há séculos, mas que estava bem conservada. Parecia que não tinha envelhecido nenhum dia.
   - Vai levar seus pôsteres de rock? - perguntou minha mãe a mim.
   - Melhor não. Pelo que vi nos papéis tem um dormitório, e nele há muitas meninas. Podem não gostar de pôsteres, ainda mais de rock. E vocês sempre se esquecem de que eu não curto mais rock. Aceitei Jesus.
   Foi aí que percebi que na verdade estávamos a um dia de nos despedirmos, eu e meus pais. O intervalo de tempo entre a minha alta e os dias que restavam para eu me preparar para ir ao IJS foi grande, mas passou com uma velocidade sem igual.
   - Vão ficar bem mesmo?
   - Vamos - respondeu meu pai pela milionésima vez - com muita saudade, mas vamos.
   Nossa despedida foi estranha. Todos queriam chorar, mas ninguém se manifestou. Parecia que em segundos minha vida tinha virado de cabeça para baixo. Eu sei que Carlos estava sendo gentil, que ele e seus amigos queriam me proteger, mas havia uma grande possibilidade de ser tudo um engano. Minha recuperação tinha sido fenomenal, mas era praticamente impossível eu ser especial. Nunca fui uma menina problemática, mas também nunca fui santa. Tinha notas na média e ouvia rock no meu quarto isolada do mundo até desistir dele; era difícil acreditar que eu era especial de alguma forma.
    Provavelmente eu seria só mais uma pessoa na multidão, então logo eu estaria de volta para casa; quando eles perceberem o engano que cometeram, pensei eu, me enviarão de volta. É, era isso que ia acontecer.
   Saí de casa como se fosse para a escola, me despedi de meus pais com um aperto no coração, daqueles que os rockeiros sentem, mas não admitem sentir. Uma coisa tão contraída que eu nem sei explicar, ou até mesmo encontrar. Eram cinco da madrugada. Num dos papéis dizia para eu ir sozinha, para não levantar suspeita. Quando cheguei ao local indicado, uns quinze minutos mais cedo, tive vontade de chorar. E chorei. O frio da madrugada me alertou que meu rosto estava molhado no meio da escuridão do matagal na beira da estrada onde eu estava agora.
   Só levei uma mala, com roupas e outras coisinhas, porque em outro dos papéis dizia que lá eles forneciam o material escolar. Tive vontade de gritar um palavrão bem alto, e só não fiz isso porque ofenderia a Deus, e iria acordar o pessoal que dormia nas redondezas. Não estava numa avenida muito movimentada, mas também não era tão isolada assim. Estava olhando para uma foto que meus pais me deram, meio antiga, em que aparecíamos nós e meu irmão. Fitei a foto e olhei para o vazio durante uns minutos, como sempre faço quando filosófo, e então um barulho me assustou. Era barulho de pneus esmagando a terra q fora jogada para o lado de dentro da estrada. Um ônibus grande e elegante estava diante de mim, e seu motor era inaudível. Como estava escuro eu não vi o que estava pintado nas paredes do ônibus, só percebi que nenhuma das janelas estavam abertas e todas eram pretas. A porta lateral do ônibus se abrira quando refleti sobre isso. Dela saiu uma pessoa conhecida, que me chamou atenção.
   - Está aí a muito tempo? - Carlos perguntou a mim preocupada enquanto eu me levantava.
   - Não, tenho o costume de chegar mais cedo nos lugares, só para não correr o risco de me atrasar - respondi secando as lágrimas sutilmente enquanto ele pegava minha mala.
   - Está pronta? - a faixa prateada era inseparável dele.
   - Isso tudo é para mim? - disse apontando para o ônibus.
   - Com certeza. Vamos.
   Entramos no ônibus, e vi que as janelas do lado de dentro eram pretas também, ou seja, quem poderia ver para onde ia era só o motorista. Assim que entrei a porta automática se fechou.
   - Você vai ficar na minha sala mesmo - disse Carlos feliz enquanto colocava minha mala na parte de cima do ônibus com se ela fosse feita de papel. Me sentei e a tristeza sumiu de mim por um instante.
   - Legal.
   - Boa sorte Yasmin...
   Olhei para ele. Era realmente alguém com que se poderia ter uma amizade para toda a vida.
   - Você tem sido muito gentil comigo Carlos. Obrigada. Sério mesmo...
   - Consigo ver o que você sente, porque já passei por isso. Meio sem rumo, meio só. Com poucas pessoas que conseguem compreender o que você pensa realmente.
   - Todos se sentem assim às vezes - justifiquei.
   - Eu me sinto assim praticamente todos os dias. Até mesmo antes de vir para o IJS.
   - Sério? Por quê? - agora o ônibus já estava em movimento. A elegância do transporte era inacreditável.
   - Não sei direito.
   - Você não tem muitos amigos no IJS?
   - Tenho alguns. Sou meio tímido em abordar pessoas para conversar. Mas estou me superando aos poucos. Dei mais um passo ao conhecer você...
   E rapidamente me lembrei da forma com que ele me explicou tudo, naquele dia no hospital.
   Só agora tinha percebido, com mais detalhes, o quanto o ônibus era luxuoso. Aquilo tudo enchia os olhos; as poltronas, o ar condicionado, a cafeteira no fundo do ônibus, a alguns metros do banheiro super higiênico. Porém, nada daquilo me fez confortável como Carlos me fizera.
   - Você é diferente de todos os garotos que conheci.
   - Como assim? - perguntou ele surpreso.
   - Em geral conheço mais moleques que garotos. Os caras súperos são assim como você?
   - Só temos os poderes Yasmin, somos humanos do mesmo jeito.
   - Às vezes me sinto muito diferente. Não como uma humana, sei lá. Os humanos são perigosos. Acho que já estava no meu destino me tornar súpero...
   - Talvez. Mas sempre nos sentimos assim. Existem muitos "moleques" no IJS também – e ele fez as aspas com os dedos ossudos no ar quando disse essa palavra -  A questão é que quando se nasce diferente, às vezes é impossível mudar certas coisas.
   - De certa forma somos iguais nisso...
   - Em que sentido - perguntou Carlos curioso.
   - Sempre soube que era diferente. Nunca tentei me mudar porque, de certa forma, era difícil demais...
   - Fez a coisa certa então - assegurou ele enquanto eu soltava um longo bocejo, então ele continuou - agora é melhor dormir.
   - Como?
   - Você acordou de madrugada. Está sonolenta demais para questões filosóficas. Durma um pouco. Temos dois anos e meio inteiros para conversar.
   Conformada concordei, estava com muito sono. Procurei inocentemente alguma alavanca para deitar a poltrona em que eu estava sentada, então Carlos num rápido gesto apertou um botão ao lado da cadeira e ela facilmente deslizou num barulho elétrico. Sorri para ele e me virei, colocando as mãos sob o rosto. Acidentalmente adormeci.
   Tive mais um daqueles sonhos onde você não se lembra do que sonhou. Parece até que eu sonhei com uma tela preta, porque tudo que eu consigo me lembrar era de um vazio, mas que já era alguma coisa. Pelo menos a sensação de sono tinha acabado quando Carlos me acordou. Talvez fosse efeito colateral de ansiedade. Tive uma imediata insônia quando acordei.
   - Que horas são? - perguntei.
   - Hora de agir. Prefere descansar? Acho que o diretor deixou você de folga hoje...
   - Por quê? Eu quero conhecer os outros... e os professores...
   - Sério? - perguntava Carlos surpreso enquanto pegava minha mala - Legal. Seu nome já está no mapa de sala. Interessante, semestre passado não tinha mapa de sala. Tanta coisa aconteceu no semestre passado...
   Saímos do ônibus e vi que havia um símbolo triangular desenhado na lateral dele, algo que não consegui ver horas atrás quando ainda era de madrugada. O sol brilhava iluminando o enorme prédio. Nunca pensei que o colégio fosse tão grande. Depois que adentrei o colégio por um portão que levava à lateral de uma quadra de esportes enorme, Carlos me falava do jardim, ao fundo da escola. Foi então que percebi que muitos alunos do IJS estavam chegando de outro canto da propriedade com malas.
   - Pensei que fossem poucos os alunos novatos nesse semestre.
   - E são - confirmou Carlos - eles estão indo viajar. Vão passar as férias no Rio de Janeiro.
   - Sério? Quantos vão lá?
   - De alunos, acho que a escola inteira, e alguns professores. Por isso falei para você agir. Vai viajar mais ainda agora. E vai de avião. O pessoal vai me  dizer como foi lá.
   - Como assim o pessoal vai te avisar? - assim que perguntei ele sorriu. Agora adentrávamos o prédio. Os corredores estavam lotados de alunos perdidos com os horários. Do meu lado ouvi alguns dizendo que o vôo estava atrasando. Foi quando Carlos me respondeu algo que me fez corar.
   - Eu nem mesmo vou. Mas você vai. Não se preocupe comigo. Não há números. Só resultados. Só quando ficamos sem internet é que percebemos os outros recursos do computador.


































Capítulo Três
Insônia


    Um mês se passou e eu não tinha entendido muita coisa da minha última conversa com Carlos. É como um livro que vi ele lendo: “Proposito Fenomeno X
Proposito Acusati”, antes de ir sair de férias com os outros. Parecia algo bastante filosófico e tudo, mas enfim. Vi ele lendo um outro livro chamado “Ruínas”, e ele disse que era mais complexo que o primeiro. Não entendia o garoto.
    Eu voltei e não tinha visto Carlos desde o retorno do belíssimo Rio de Janeiro. Lembrei disso no dormitório. O quarto estava escuro como o passado. Desde que voltei de viagem do Rio estava encantada a cada segundo do presente. No passado só me lembrava dos meus pais e do Cristo Redentor.
    Mas sobre acordar, não que fosse a hora, muito pelo contrário na verdade. O quarto estava sendo iluminado, mas não pelo sol, como deveria ser quando acordamos assim que o sono some, mas pela lua. Ela iluminava o cômodo grande demais para ser um quarto, mesmo sendo um dormitório, e ainda por cima feminino. Metade das meninas babava no travesseiro de tanto dormir, cochilavam serenamente sob a luz da lua cheia, e eu que estava no escuro me encontrava mais acesa do que a própria lua. Desde a viagem do Rio eu não dormia direito. Deveria, já que foi maravilhosa, tirando a gritaria da professora de Redação, constantemente e falivelmente tentando por ordem na classe enquanto andávamos nas areias da praia. Ainda posso sentir o gosto salgado da brisa que vinha do mar.
    Mas isso foi antes. Antes de eu resolver não dormir. Era a única explicação, porque uma dorminhoca não perde o sono, a não ser que sua cabeça resolva fazer isso. Eu sabia que não adiantaria nada, mas comecei a observar o quarto; as plaquetas pregadas em cada cama de cada beliche, indicando de qual garota seria tal cama, a minha própria plaqueta escrita em letras reluzentes “YASMIN”, a passagem de avião do IJS que eu guardara de lembrança assim que fui para as férias, saí do meu mundinho e vim para cá. Não adiantou. Continuei sem sono.
    Comecei a me lembrar; eu era a estranha da minha classe. A aberração. A diferente. E agora nas férias após um imprevisto com mariposas no hotel eu descobri que não, não estava lá por acidente. Eu era a menina que conseguia se comunicar com insetos. No IJS, agora eu era só mais uma. Só mais uma diferente. E era só mais uma que tinha poderes, e pelo menos isso me tranqüilizava.
    E quanto mais eu pensava, mais ficava sem sono. Então cometi um erro mais grave ainda, pior do que não ficar na cama; fui a pia do banheiro e joguei uma água na cara. É impressionante como fazemos coisas erradas quando pensamos em muita coisa ao mesmo tempo. Distraída eu fui lá e fiz essa droga toda. Pronto, agora é que eu não tinha a menor vontade de dormir, nem mesmo de voltar para a cama.
    Diante de tudo isso resolvi ir a sala; poderia assistir televisão, isso às vezes me ajuda a dormir. Ao ir vi minha melhor amiga até agora dormindo. Rikelly dormia como se tivesse tomado um sonífero. A menina de pele café com leite, cabelo modificado e alargador na orelha eram uma das poucas que me entendiam, apesar de eu nunca admitir que eu fosse punk como ela. Conversamos nas férias sobre tudo, mas principalmente fotografia, que era o que mais gostávamos. Era muito legal ter Rikellly por perto.
    Mas enfim, eu estava me dirigindo para a sala até que senti com o meu poder uma borboleta que ficara presa e estava voando perdida pela sala. Foi então quando uma voz disse a mim – e eu estava tão apavorada com a borboleta que também não tinha percebido que a tv estava ligada.
   - Eu não a matei por você – disse baixo uma moça loira de olhos azuis sentada de frente para a televisão – na verdade, deixei de matar insetos desde que fiquei sabendo que você se comunica com eles.
    - É verdade – sussurrei abrindo uma das janelas laterais da sala vagarosamente para não fazer barulho aos que estavam dormindo e tentando dizer á borboleta que aquele era o caminho para fora, e rapidamente ela me obedeceu – qual é seu nome?
    - Taciane – só agora eu tinha percebido que essa era aquela loirinha magra de mecha vermelha que sempre via nas férias e nunca tinha conversado.
    - A Rikelly te contou meu poder?
    - Contou, mas não a culpe por isso... ela meio que disse sem querer que você passou a aceitar mais os insetos depois de descobrir seu poder. Você os odiava.
    - É, também é verdade. Estou começando a aceitar joaninhas. É tão estranho tudo isso, quer dizer – desabafei algo que estava preso – eu nem sei direito como meu cérebro funciona para... sei lá...
    - Quase nunca sabemos ao certo – percebi agora que ela estava vidrada na tela da televisão, mas falava comigo normalmente – ta sem sono?
    - É... e você?
    - Eu não durmo.
    Fitei-a por um segundo. Achei inacreditável e quis confirmar com outra pergunta.
    - Nunca?
    - Em hipótese alguma. Meu corpo tem eletricidade estática demais fabricada e armazenada pelo meu coração, eu acho. Nunca tenho sono.
    - Ah, legal... só que no meu caso é insônia mesmo.
    - Bom Yasmin, é Yasmin né? – Ela me perguntou e eu assenti com a cabeça enquanto espiava com a cabeça o que ela estava assistindo – Não é a única pessoa hoje a ter insônia. E não falo de mim.
    - De quem fala? – perguntei curiosa
    - Carlos. Na verdade faz já um tempão que ele não está dormindo direito. Desde o episódio com o Número Um.
    - Quem?
    - O clone dele, sabe...
    - Ah sim – nas férias inevitavelmente já tinha ouvido falar do assunto do momento: Carlos, como ele encontrou seu clone, de como esse clone havia prejudicado seus amigos e de como os seus próprios amigos o ajudaram, mas não tinha gravado o nome dele. E também não me lembrava direito o que era a tal “chave elemental”.
    - Estranho né? Nem nome ele tem direito...
    - O que aconteceu depois? – perguntei a ela a parte da história que não tinha ouvido, sem me preocupar se ela dava mais atenção a mim ou a tv.
    - O cara fugiu. Carlos deve estar sem dormir de preocupação. Mas também, não é pra menos né...
    - É – comecei a me colocar no lugar do garoto – onde ele está agora? O Carlos...
    - Lá fora – disse ela apontando para a porta aberta da sala com o polegar direito enquanto eu bocejava. Já devia ter bocejado umas três vezes nesse meio tempo, mas ela nem ficava com o olhar mole – eu converso com ele algumas vezes nesse horário, mas na maioria das vezes tenho receio de interromper seus pensamentos.
    - Entendi. Vou tentar falar com ele.
    - Ok.
    E então eu fui. Já não tinha sono, aproveitei e fui conversar com um dos poucos com quem tive a sorte de trocar um “olá” na sala. Nem imaginava que aconteceria essa guinada em minha vida, pois conheci uma das pessoas mais fascinantes. Não imaginava o quanto Carlos mudaria meus pensamentos. Bons e ruins.
    O garoto estava encostado no vidral colorido em forma de mosaico, observando o céu e tudo o que a lua gentilmente iluminava em um dos pedaços transparentes da janela artística. Não tinha fisionomia de sono, o que significava que poderíamos conversar sem eu me sentir mal educada ou impertinente de alguma forma.
    E foi então que percebi: pela primeira vez o vi melhor. Era um garoto bem magro, bem alto, usava óculos com armação preta e cintilante e tinha o cabelo meio bagunçado. Na maioria das vezes usava camiseta branca e calça escura, geralmente de alguma cor suja, mas não era sempre, variava seu visual. O all-star branco se destacava por debaixo do tecido da calça comprida escura, e vi a ponta do que seria um relógio bonito escapando de um dos bolsos direitos. Não tinha nenhum traço de barba e bigode.
    - Carlos? – O chamei cuidadosamente para não assusta-lo. Estava com o olhar parado, perdido entre seus pensamentos.
    - Olá – ele me respondeu meio tímido – meio tarde, não?
    - Estou sem sono – respondi justificando.
    - Quer saber alguma coisa?
    - Como? – perguntei confusa me aproximando. Sentei na mureta abaixo do vidral, imitando-o. Consegui com muita prazerosa dificuldade ver uma parte do jardim da escola, na parte traseira da propriedade.
    - Ultimamente o pessoal tem feito muitas perguntas. Faz algum tempo que não conversam comigo sobre algo que não seja a respeito do Número Um ou da chave elemental.
    - Isso o desagrada? – perguntei, morrendo de curiosidade sobre a tal chave que ele havia mencionado.
    - Não... é até bom, agora quase todos conversam comigo. Antes conversava com poucas pessoas.
    - Você era tímido?
    - Ainda sou – ele admitiu de cabeça baixa, e percebi que ele tinha vergonha de me olhar nos olhos – os outros é que não são, e os que são a venceram pela curiosidade.
    - Sei.
    - Já sabe a história toda? Pode perguntar se quiser...
    - Bem, não sei muito sobre a chave – admiti.
    - A chave elemental pode aumentar os poderes de um súpero ou fazer com que ele tenha qualquer poder de qualquer súpero que se tenha em mente – ele disse muito rápido e perfeito, provavelmente tinha decorado – só que não sei usa-la direito. Número Um deu a entender que eu poderia controlá-la. Estou sendo chato demais?
    - Naum – às vezes meu “não” era diferente – você sempre se expressou bem. E tem a barba bem feita também.
    Me lembrei de Eduardo e sua barba rala porém persistente começando a crescer.
    - Mesmo problema dos cabelos. Não cresce. Assim como as unhas. Em compensação sempre fui crescidinho...
    - Isso é bem visível – concordei – e seu poder... é incrível. Não só o vi aquele dia no hospital como ouvi muito dele através do pessoal da sala.
    - Obrigado... e você? Descobriu seu poder?
    - Nada interessante – respondi com vergonha – eu meio que me comunico com os insetos...
    Ele sorriu.
    - Existe um poder determinado para cada um de nós. Deve se contentar com o que tem.
    - É verdade – na real, eu nunca tinha pensado nessa possibilidade até o dia em que ele me disse isso.
    - Você toma banho cedo...
    - É – respondi – meu horário de banho é o primeiro do das garotas. Incrível como o IJS é organizado, até nos horários da lavanderia, e mais incrível ainda como eu dei azar de pegar o período da manhã para tomar banho.
    - Hum – e então ele ficou pensativo, depois respondeu – acho o cálculo da média meio sofrido. Não gosto de trabalhos em grupo.
    - Nem eu – correspondi na fuga de assunto - 10 mais 10. 5 pontos distribuídos para as tarefas, mas que acabam sendo quase todas despejadas nos trabalhos em grupo, 5 pontos para os testes e 10 das provas finais. Somar tudo e dividir por dois parece maravilhoso na teoria, mas na prática...
    - Desculpe eu estar falando assim com você.
    - Assim como?
    - não sou muito bom em diálogos, quero dizer, fico com medo de conversar com as pessoas e de repente fico sem assunto, e esse medo faz com que eu fique sem assunto mesmo.
    - Normal – o tranqüilizei – eu também sou assim.
    - É por isso que fico tentando puxar assunto, na maioria das vezes sem sucesso.
    - Entendi.
    E então, mais uma vez, o silencia reinou entre nós. Só o que se ouvia era a tv sussurrando ao longe; Taciane com o volume baixo para não acordar os outros. Foi aí que senti uma forte saudade de casa.
    - Lembra do caos aéreo que te falei? – Carlos tentou arriscar me chamar atenção em meio aos meus pensamentos melancólicos de saudade.
    - Sim, por quê?
    - Foi ele. O Número Um me disse que foi o responsável pelo caos aéreo.
    - Por que ele fez aquilo?
    - Para eu vir para cá. Às vezes acho que sonho com o que ele diz, ou disse para mim. Por isso não gosto de falar muito dele. Nem sei direito o que ele disse realmente e o que veio da minha imaginação... nas poucas vezes que sonho eu vejo hipóteses se ligando à minha mente.
   - Como por exemplo?
   - Como por exemplo – e ele alongou muito as palavras para melhor pensar numa resposta adequada – ele quis que eu viesse para cá talvez porque longe da minha família eu ficaria mais fraco. Mas fiz dos meus amigos uma família.
   - Tem muitos amigos?
   - Não. Eles são poucos. Mas são de qualidade. É muito precioso um círculo de amizades como o que eu estou inserido. É como uma religião, como se Deus tivesse os enviado para mim. Consigo ver Deus em cada um deles; em cada qualidade.
   - Interessante.
   - O quê? – ele voltou a olhar para mim depois de muito tempo.
   - A sua visão de Deus é essa?
   - Através da emoção sim.
   - E através de que mais você o vê? – eu estava cada vez mais curiosa com relação ao que o garoto dizia.
   - Da razão.
   - E o que é Deus através da razão para você? – estava gaguejando e falhando ao dizer essas palavras com tanto cuidado. Queria falar corretamente como Carlos falava, e acabava tropeçando nos termos que eu quase nunca usava só para ficar ao mesmo nível de vocabulário que ele.
   - O ser ou a ser suprema.
   - A ser? – estranhei.
   - É difícil dizer o que penso. Minhas teorias. Às vezes vejo Deus mais como mãe do que como pai.
   - Por quê?
   - Mães são mais compreensíveis. É nelas que sempre pensamos quando fazemos algo de errado. Vejo Deus como uma transição entre energia e matéria. Ele está em tudo, mas nada está nele. Não deveria estar te falando essas coisas...
   - Por que diz isso?
   - Pode ser que você me ache estranho demais...
   - Relaxa, eu também sou estranha – respondi sorrindo e continuei, já não me preocupando com o sono – você tem religião Carlos?
   - Não. Não acredito nelas.
   - Por quê?
   - Elas mais dividem do que juntam. Eu sou bem racional quanto às coisas que acho que fazem bem a mim e ao mundo.
   - Você só acredita em Deus então...
   - E no espiritismo.
   Tentei reformular o pensamento franzindo a testa, para continuar a conversa.
   - Mas não acabou de dizer que não acreditava em religião?
   - E não acredito – ele insistiu timidamente.
   - Mas é espírita?
   - Sou.
   - Então de alguma forma você é religioso...
   Ele me olhou por um momento, depois sorriu e prosseguiu.
   - O espiritismo não é religião.
   - Não? – realmente me surpreendi – E o que é então?
   - É uma doutrina. A única que explica o que o homem que saber realmente. Revela cientificamente o “sobrenatural” inventado pelo homem.
   - Como assim “inventado”? Não é isso que o espiritismo propõe? Que o sobrenatural existe?
   - Há um mal entendido. Não existe nada sobrenatural. É difícil explicar a você, digo, a alguém que não conhece o espiritismo, mas o que posso dizer é que o mundo dos espíritos é muito mais natural que o nosso. É o único em que há lógica científica, ao contrário do nosso – e ele disse “nosso” apontando para o chão – que pode deixar de existir a qualquer momento, por um terremoto, tsunami ou até mesmo em conseqüência de má administração política que venha gerar conflitos, guerras e extermínio. Nesta ordem.
   O garoto tinha uma velocidade de pensamento impressionante. Tinha a mente mais astuta que eu já havia conhecido.
   - Não há hipocrisia política no mundo espiritual?
   - Há, mas só entre os de classe baixa de moralidade. Yasmin – ele começou a dizer com cuidado – você tem religião?
   - Tenho...
   - Eu não gosto – ele me interrompeu antes que eu dissesse a que religião eu pertencia – de conversar sobre tudo o que falamos.
   - Mas por que não? É interessante.
   - Eu sei, mas mesmo assim você poderia me interpretar mal por inúmeros motivos. Poderia dizer que sou um orador, quando na verdade eu só leio e investigo o que quero saber. Eu estou em busca da verdade, assim como o homem sempre esteve, e talvez sair da “rotina” pode assustar quem não está acostumado. As pessoas não podem saber de tudo de uma hora para outra, ou então só haveria loucos. Não estão preparadas para sair de sua zona de conforto.
   - Eu te entendo, mas não é fácil me convencer – eu o alertei – se estou gostando do que você fala é só porque quero saber suas idéias sobre tudo, mesmo que eu não vá acreditar nelas...
   - Carlos permaneceu calado. Realmente eu percebi que ele não tinha mais ousadia para prosseguir, mesmo sabendo que eu era toda ouvidos e sabendo que eu sabia que ele era uma literatura ambulante.
   - Ousadia.
   - O quê? – ele me perguntou assustado.
   - Seja ousado para passar as pessoas o conhecimento que você tem. Pode ajudar e muito.
   - Eu sei, “aprenda a falar direito ou ninguém vai querer ouvir você”, mas eu ainda não sei falar direito e me comportar assim para iluminar alguém com a luz da razão, porque... e se elas não quiserem ser ajudadas?
   - Isso é diferente.
   - Vamos mudar de assunto?
   Foi um convite. Ele ficou receoso de me dizer tudo o que sabia.
   - Ok – assenti aborrecida – e sobre o que vamos conversar?
    Ficou mergulhado em um longo silêncio, buscando algo para dizer. Então arrisquei.
   - Por que não foi para o Rio com a galera?
   - Podia ser perigoso – ele me respondeu – acho que o Número Um que a mim e a chave, não podia arriscar a vida dos meus amigos viajando com eles. Pedi então ao diretor para não viajar, me justifiquei e ele com uma certa tristeza concordou comigo.
   - Se lembra do clone dizer claramente que está atrás de você e da chave?
   - Nem sei. É como eu disse, às vezes me perco entre lembranças que acho que ocorreram e apenas impressões minhas. Gostaria de saber qual é o limite de armazenamento de informações que a mente humana tem. Confundo muito minhas lembranças com impressões, então ironicamente falando, pode ser impressão minha, mas lembranças podem não ser todas confiáveis, assim como as pessoas.Sempre me lembro disso quando tiro uma nota baixa depois de estudar uma tarde inteira. Acho que é porque pego os livros pra estudar em cima da hora. Acho que o aprendizado é apenas memória. Nós lembramos das coisas que aprendemos. Qualquer um pode ter memória fotográfica. É só condicionar.
   - Entendo o que quer dizer.
   Carlos podia passar cola, mas não era o tipo de garoto que colava em provas.
   - Carlos – continuei – até agora só conversamos sobre coisas que de certa forma é obrigado a fazer. O que gosta de fazer para se divertir?
   - Bem – retrucou ele depois de uma breve parada reflexiva – não sou muito fã de festas, por exemplo. Tenho planos para diversão, mas é quando eu tiver recurso para eu me divertir. Sempre gostei muito de ler, principalmente sobre estudos a respeito de como funcionam as coisas, na sua essência, como filosofia, que é a origem de todas as ciências que existem e que ainda existirão. Gosto muito de música e de tecnologia, e não ligo muito para moda ou luxo. Então quando ganhar dinheiro eu vou gastar o que tiver sobrado dos investimentos de sobrevivência, como comida e moradia, com informática, livros e CD’s. As roupas que quero ter serão bonitas, mas não muito caras. Acho desperdício gastar em uma calça o que poderia ser gasto em coisas como literatura, por exemplo.
   - Sei. E enquanto a namoro?
   Ele olhou para mim assustado.
   - O que tem? – me respondeu olhando para baixo.
   - Bom, é uma diversão também, não é? Digo, lazer...
   - Não tenho dado muita sorte com as moças ultimamente, mas ainda estou confiante – ele me respondeu com uma voz bastante abafada e quase que inaudível – acho que é porque não sou como os garotos populares que praticam futebol ou gostam de música eletrônica.
   - Isso eu percebi – disse – mas não se preocupe com isso. Existem vários tipos de moças. Alguém vai gostar das coisas que você gosta...
   - E gostar de mim – ele disse isso num tom bastante melancólico.
   - Claro, e gostar de você – repeti completando.
   Depois de um longo intervalo de tempo eu iria dizer a ele que se eu não fosse me deitar, nem eu e nem ele íamos dormir. Mas Carlos me disse algo antes de eu dizer isso a ele, interrompendo meus pensamentos.
   - Você tem irmãos Yasmin?
   - Tenho um irmão – respondi – mas não é súpero. Ficou pra trás.
   - Tenho que achar o meu. O Número um disse que não tinha o achado. Ainda tenho mais isso com o que me preocupar...
   - Sua cabeça anda bem ocupada hein? –perguntei séria.
   - Sempre – ele respondeu com a mesma seriedade com que a pergunta foi proferida – ainda mais agora que tenho fitado a sala mais atentamente.
   - O que quer dizer? – perguntei curiosa.
   - Acho que estou gostando de uma garota.
   - Sério? Da nossa sala? – perguntei animada e ele fez que sim com a cabeça. Fique com vergonha de perguntar quem era, porque era algo do qual ele provavelmente não queria dizer. – Posso ajudar se quiser. Algum conselho para conquistas, sabe. Comece nunca dizendo a ela que gosta dela assim. Pode apavorá-la.
   - Obrigado – ele disse sorrindo tristemente.
   - Bom – prossegui no que ia dizendo antes – talvez você não acredite em perdão, só em desculpas, mas eu tenho que me deitar. Senão amanhã vou ser uma sonâmbula a tarde inteira zumbizando por aí...
   - Por que eu não acreditaria em perdão? – ele me perguntou confuso.
   - Sei lá. Tem pessoas que, tipo, acredita que só quem perdoa é Deus...
   - Isso é uma desculpa.
   - Como? – perguntei confusa pela trocentésima vez.
   - Jesus nos ensina que só seremos mais felizes quando aprendermos a perdoar. Quem diz que só consegue “desculpar”, e que quem “perdoa” é só Deus, na verdade arranjou uma desculpa para não perdoar as pessoas. É uma mentira causada pela incapacidade que as pessoas tem para aceitar que o agressor errou. Incapacidade essa causada pelo orgulho, pois se acham melhores do que os que erram.
   - Uau.
   - O quê? – perguntou ele vermelho com um sorriso sem graça.
   - Isso foi bem profundo. Bom, quero conversar mais com você, óbvio, mas agora tenho que ir dormir – enquanto disse eu dei uma pausa e soltei um bocejo enorme – desculpe.
   - Por esse e pelos outros.
  - Outros? – perguntei enquanto tinha me levantado e estava a caminho do 1ºC
   - Você abriu a boca de sono umas cinco vezes desde que começamos a conversar.
   - Sério? Nem percebi – e não tinha percebido mesmo, fique envergonhada – pelos outros também então.
   - Tudo bem. Normal. Até amanhã – disse ele sorrindo enquanto eu entrava no 1ºC.
   - Até amanhã – respondi por fim.
   Taciane ainda assistia TV.
   - Já conversou com o Carlos antes? – perguntei curiosa.
   - Não muito – ela admitiu – ele é bem tímido.
   - Finja que é tímida. Acho que só consegui falar com ele o quanto eu falei porque sou tímida com ele. Acho que foi só entender como ele se sente, pelo menos um pouco.
   - Por que perguntou se eu já tinha conversado com ele? A conversa foi agradável?
   E antes de entrar no dormitório respondi:
   - Melhor impossível. E olha que só o conheço a sessenta minutos.
   Tínhamos conversado por meia hora. Conferi no despertador da sala.




































Capítulo Quatro
Duplas


   Eu realmente não tinha acreditado em alguma e outra coisa que Carlos tinha me dito, e nem a Rikelly, visto que falava muito sobre a Bíblia, mas tínhamos que admitir que Carlos tivesse conclusões bem interessantes sobre o mundo. No dia seguinte contei as “poucas” coisas que conversei com Carlos a minha melhor amiga – embora quase não tivesse tempo de conversar com ela – e vi que ela parecia relutante e confusa sobre algumas partes.
   - E ele leu muito a Bíblia Sagrada? – Rikelly me perguntava.
   - Parece que ele lê de tudo... tive a clara impressão de que ele pesquisou muito bem para seguir alguma crença – expliquei a ela.
   - Ele me parece ser uma pessoa bem legal, apesar de acreditar em coisas que eu não vejo muita razão em acreditar. Acho que vale a pena falar com ele. Ainda terão oportunidades, aí vou fazer isso – ela prometia a mim e a si mesma.
   No dia que se seguiu, quando todos acordaram para mais um dia letivo, eu vi Carlos no canto da sala. Timidamente – para variar – ele acenou a mim. Parecia bastante feliz em me rever. Não tinha nenhum sinal de possível sono em seu olhar ou na sua face, ao contrário do meu, que logo percebi qual a razão de não lembrar toda a conversa para repassar para Rikelly um dia antes. Normalmente eu parecia ter cafeína no sangue, mas de uns dias para frente meu corpo tinha a sensação de ser feito de sonífero até nos ossos.
   Eu conhecia somente vinte por cento das pessoas da sala, contando com Carlos. Dos que eu conhecia, só metade tinha descoberto que poderes eles realmente tinham. Isso me intimidava, porque a sala era enorme.
   Estudavam 47 alunos no 1ºC, 47 mentes que funcionavam cada um de um jeito, 47 poderes diferentes que possivelmente causariam ou não um grande estrago no mundo,A sala lotada de súperos sempre dava a impressão de que algo eminentemente ruim ia acontecer, porque não achava uma boa idéia tanta gente habilitadamente paranormal junta no mesmo lugar.
   Logo depois das três primeiras aulas, no horário de almoço, Rikelly me apresentou alguém que tinha tido o azar de ser parente de um dos professores. Danielle nem era da nossa sala – fazia o 3º ano – mas conversava de tempos em tempos com Rikelly, às vezes se queixando de ser irmã de Júnior, o professor de matemática da escola. Ela era uma moça até parecida com Rikelly, exceto por obviamente aparentar ser um pouquinho mais velha, ter a pele mais escura que a pele de café-com-leite da minha amiga e não ter a parte de trás do cabelo pintada de vermelho como Rikelly tinha feito. Fora isso, as duas se assemelhavam muito.
   - Não são vocês duas que são irmãs? – brinquei – Quer dizer, não que você não seja parecida com o Júnior, é que são bem parecidas vocês duas.
   - Começamos a ter contato de tanto as pessoas falarem isso – respondia ela.
   - É verdade – concordou Rikelly. – Mas e aí, mais alguma previsão?
   - Não. Nenhuma.
   - Como é? A Danielle prevê coisas? Como é seu poder? Você tem premonições?
   - Sim. Pode me chamar de Danny, todos me chamam assim – e assim que ela disse isso, acabei de lembrar que a única vez que vi alguém a chamando pelo nome foi agora, quando eu fuá apresentada a ela – às vezes tenho premonições. Não é muito legal...
   - Por quê?
   - Prevejo mais notícias más do que boas...
   - Isso é cansativo?
   - Não porque são raras. Eu acho. Aliás, tive uma sim, agora me lembrei. Queria ter dito a você, mas com a pressão de uma apresentação em um seminário de Literatura que ia fazer acabei esquecendo. Foi há algum tempo.
   - Sério? – disse Rikelly surpresa – e o que viu?
   - Vi um rapaz de óculos escuros. Só que atualmente, pelo menos até agora, ele não usa óculos escuros.
   - Que rapaz?
   - Aquele – disse Danny depois de uma olhada em todo o refeitório, apontando com o queixo enquanto dizia, para não fazer a indelicadeza de usar o dedo indicador. Vi sorrateiramente quem estava sendo apontado. Era o Carlos.
   - Que estranho. É, ele não usa óculos escuros mesmo. Aquele é o Carlos não é Yasmin?
   - É sim – disse surpresa – Mas por que estaria usando óculos escuros?
   - Não sei. Só sei que é por algum motivo ruim – Danny garantiu.
   - Por que diz isso? – perguntei preocupada.
   - Na visão ele se protegia da claridade. Parecia que a luz o incomodava. Tenho que ir moças. Dever de literatura. E depois de matemática. Júnior não para de pegar no meu pé.
   E então ela se retirou depois de nos despedirmos. Antes das aulas da tarde, decidi falar com Carlos sobre a notícia. Fui até o 1º C e lhe disse o que ouvi.
   - Você me deu vários conselhos sobre tudo e mais um pouco. Gostaria que seguisse esse. Cuidado com os olhos, ok?
   - Ok – disse ele – mas eu não sigo meus conselhos.
   - Como? – o garoto era enigmático demais...
   - Posso saber bons conselhos, mas não consigo seguir metade deles – disse ele enquanto brincava com uma folha de papel rabiscada, jogando-a para lá e para cá na superfície da mesa onde ele estava ao lado.
   - Por quê?
   - Sou muito imperfeito. Tento me corrigir sempre, mas muitas vezes não consigo. Passo meus conhecimentos limitados a diante esperando que alguém consiga. Vou seguir seu conselho, mas devo lê dizer que meu corpo é meio maluco. Só para você ter uma idéia, sou resistente a muitas coisas, mas tenho miopia e astigmatismo. 
   - Ok – respondi sorrindo – só tente ter cuidado.
   Resolvi me sentar e conversar um pouco com ele. Danny deveria ter muitas anotações a fazer nas tarefas de casa/sala, pois ainda tinha muito tempo até o começo das aulas a tarde. Ou talvez ela fosse excelente aluna e fazia as tarefas todas rapidamente para não ter problemas futuros.
   - Mas, sabe – eu resolvi dizer – pode continuar aconselhando as pessoas, mesmo que elas não te dêem ouvidos.
   - Eu sei. Se o mal não é o oposto de bem, e só a ausência dele, então se tem a oportunidade de fazer o bem e não o faz, é o mesmo que fazer o mal. Assim como você não sabe quando as pessoas fazem o mal a você. Só sabem quando elas não fazem o bem.
   - Hum. Interessante.
   - Vou ao banheiro ok?
   - Tá.
   Carlos se levantou sem o menor esforço e foi. Vi de relance que ele tinha largado a folha de papel na mobília. Pensando ser alguma tarefa que eu, para variar, possivelmente esqueci de fazer, resolvi olhar o que estava escrito. Não era sobre a escola. Era uma lista onde, debaixo dos dizeres  “Para Bruno” escrito no topo da folha com um garrancho minúsculo e semi-ilegível, estava escrito:


BANDAS PARA CONHECER:

Ganeova
Saimerej
Mayer
Gniyllub
Codinome
Ivan
Cavaleiros do Cálculo do Sul
Tribo Prateada
Corvo Prateado
Anomalya
Criptograma
Matriculados
Alicate


   A folha estava traçada ao meio. Do lado direito estava a lista que eu tinha acabado de ler. Depois de me surpreender com os gostos musicais de Carlos – todas bandas de rock com longas discografias e algumas com miscigenação em musica clássica – vi a lista do lado esquerdo:



LIVROS PARA LER:

O Mago e a Princesa
O Livro que só Jesus Seguiria
O Jerusalém
O Austríaco
Nerd
Notas Sobre um Mundo não Necessariamente Rimado
AIDS: A Cura
Além das Grades os Rockeiros
1001 Coisas Para se Fazer Antes de Morrer
Vagamundo


   Quando acabei de ler, me assustei com Carlos diante de mim, me fitando.
   - Desculpe – disse corando – não era a minha intenção – respondi langando delicadamente e vagarosamente o papel na mesa em que encontrei, no mesmo lugarzinho de mogno.
   - Calma – disse ele abrindo um sorriso largo, tendo o cuidado para não deixar os dentes para frente à vista no sorriso, enquanto eu via ele pegando a folha de volta – bom, acho que agora sabe de que coisas eu gosto...
   - Quem é Bruno?
   - Um amigo meu do 3º ano. Converso bastante com ele. Como eu gosto muito de tecnologia e ele entende pra caramba disso, e como ele gosta muito de música e é muito estudioso... resolvi lhe escrever essa lista. Quer dizer, listas.
   - Entendo – disse enquanto ele dobrava e guardava o papel em um dos bolsos da calça, o mesmo bolso onde ele guardava um relógio preto. Acabou amassando de modo desajeitado a folha por isso – eu gostava de rock também...
   - Uau, conseguiu ler minha letra? – disse ele sorrindo de forma surpresa – ela é horrorosa... às vezes nem eu consigo entender o que escrevo.
   - Engraçado. Eu não sabia que você gosta de rock.
   - Só consigo ouvir rock e música clássica.
   - Já leu todos esses livros? – perguntei impressionada
   - Sim sim. Resolvi não colocar na lista os livros espíritas que já li, porque ele é católico fervoroso e poderia se afastar de mim. Acho que ele nunca leria livros espíritas. Vamos ficar um tempo sem nos ver depois de eu lhe dar essa lista. Ele vai demorar um bocado a ler todos esses livros.
   - Mas ele não vai se formar? Está no 3º correto? E se demorar e ele partir...
   - Vão fazer uma faculdade de súperos aqui ao lado do IJS, para quem quiser estudar perto dos antigos amigos, dos outros súperos...
   - Ah sim, que legal... pra você, estudo deve ser vital né? Deve ser essencial para sua vida...
   - Eu realmente gosto muito. Sem leitura nós só sobrevivemos. Com leitura vivemos. Na verdade, pode-se dizer que é a terceira coisa essencial para mim.
   - E quais as outras coisas? – perguntei automaticamente.
   - Coragem e resignação – ele me respondeu.
   Com o passar do tempo eu percebia que Carlos gostava bastante de literatura, mas gostava ainda mais de filosofia.